Faz meio século o assassinato do comandante Carlos Lamarca, uma covarde execução com sete tiros, como dizia O Globo ao publicar o laudo pericial. Lamarca foi o chefe do movimento armado contra a Ditadura militar. O texto, a seguir, é o depoimento pessoal histórico de Celso Lungaretti, jornalista, escritor e ativista, editor do blog Náufrago da Utopia. Lungaretti fazia parte, aos 17 anos do movimento secundarista contra a ditadura e ingressou em 1969, com 19 anos, na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Conheceu pessoalmente o comandante Lamarca e sofreu torturas e prisão ao ser preso.
Por Celso Lungaretti
O comandante Carlos Lamarca – cuja inclusão no Livro dos Heróis e das Heroínas da Pátria nem mesmo presidentes da República ditos progressistas ousaram propor, embora tenha sido um dos maiores deles – estava debilitado e indefeso quando a repressão ditatorial o executou no sertão baiano, em 17 de setembro de 1971, numa típica vendetta de gangstêres.
O que há, ainda, para se dizer sobre Lamarca, o personagem brasileiro mais próximo de Che Guevara, por sua história de vida e pela forma como encontrou a morte?
Foi, acima de tudo, um homem que não se conformou com as injustiças do seu tempo e considerou ter o dever pessoal de lutar contra elas, arriscando-se sem limites e pagando um preço altíssimo pela opção que fez.
Teve enormes acertos e também cometeu graves erros, praticamente inevitáveis numa luta travada com tamanha desigualdade de forças e em circunstâncias tão dramáticas.
Mas, nunca impôs a ninguém sacrifícios que ele mesmo não fizesse. Chegava a ser comovente seu zelo com os companheiros – via-se como responsável pelo destino de cada um dos quadros da Organização e, quando ocorria uma baixa, deixava transparecer pesar comparável ao de quem acaba de perder um ente querido.
Logo depois do Congresso de Mongaguá (abril/1969), quando a VPR saía de uma temporada de luta interna e de quedas em cascata, o caixa estava a zero e os militantes, clandestinos em sua maioria, careciam desesperadamente de dinheiro para manter as respectivas fachadas de cidadãos inofensivos – qualquer anomalia, mesmo um atraso no pagamento de aluguel, poderia atrair atenções indesejáveis.
Mas, o chamado grupo tático fora o setor mais duramente golpeado pelas investidas repressivas. Então, quando se planejou a expropriação simultânea de dois bancos vizinhos, na zona Leste paulistana, o pessoal experiente que sobrara não era suficiente para levá-la a cabo.
Eu e os sete companheiros secundaristas que acabáramos de ingressar na VPR fomos todos escalados – na enésima hora, entretanto, chegou a decisão do Comando, que me incumbiu de criar e coordenar um setor de Inteligência, então fiquei de fora.
Lamarca, procuradíssimo pelos órgãos repressivos, fez questão de estar lá para proteger os recrutas no seu batismo de fogo. Os outros quatro comandantes nacionais tudo fizeram para demovê-lo, em nome da sua importância para a revolução. Em vão. A lealdade para com a tropa nele falava mais alto.
O Globo e a Folha de SP deram grande destaque à revelação |
observando à distância, pronto para intervir caso houvesse necessidade.
Houve: um guarda de trânsito, alertado por transeunte, postou-se na porta de um dos bancos, arma na mão, pronto para atingir o primeiro que saísse.
Lamarca, que tomava café num bar a 40 metros de distância, só teve tempo de apanhar seu .38 cano longo de competição, mirar e desferir um tiro dificílimo – tão prodigioso que, no mesmo dia, a ditadura já percebeu quem fora o autor. Só um exímio atirador seria capaz de acertar.
[Foi, como nos contaria meses depois, a primeira vez em que atirou num ser humano. Temendo não haver acertado, fez um segundo disparo. Pelos jornais ficou sabendo que ambos atingiram o policial em cheio.]
Como resultado, a repressão teve pretexto para fazer de Lamarca o inimigo público nº 1 – e, claro, o aproveitou ao máximo. A imagem dele foi difundida à exaustão em jornais, revistas e tevês, obrigando-o a redobrar cuidados e até a submeter-se a uma cirurgia plástica.
Também teve de brigar muito com os demais dirigentes e militantes para salvar a vida do sequestrado embaixador suíço Giovanni Butcher, quando a ditadura militar se recusou a libertar alguns dos prisioneiros pedidos em troca dele e ainda anunciou que o Eduardo Leite (Bacuri) morrera ao tentar fugir.
Dá para qualquer um imaginar a indignação resultante – afinal, as dantescas circunstâncias reais da morte daquele companheiro ficaram conhecidas na Organização ("Além de hematomas, escoriações, cortes profundos e queimaduras por toda a parte, apresentava dentes arrancados, orelhas decepadas e os olhos vazados", segundo o relatório da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos).
Mesmo assim Lamarca não cedeu, usando sua autoridade até o limite para evitar que a VPR desse aos inimigos o monumental trunfo que as Brigadas Vermelhas mais tarde dariam, ao executarem Aldo Moro. O episódio foi tão traumático que, logo adiante, ele acabaria deixando a VPR.
E, no MR-8, novamente divergiu da maioria dos companheiros – quanto à sua salvação.
Dando aulas de tiro a bancárias. Ele nos contou que as aconselhava a não reagirem, "esse pessoal é perigoso". |
Pressionaram-no muito para que saísse do Brasil, preservando-se para etapas posteriores da luta, pois em 1971 nada mais havia a se fazer. Aquilo se tornara um matadouro.
Conhecendo-o como conheci, tenho a certeza absoluta de que não perseverou por acreditar numa reviravolta mágica. Em termos militares, suas análises eram das mais realistas e acuradas. Nunca iludia a si próprio.
O motivo certamente foi a incapacidade de conciliar a ideia de fuga com todos os horrores já ocorridos, a morte e os terríveis sofrimentos infligidos a tantos seres humanos idealistas e valorosos. Fez questão de compartilhar até o fim o destino dos companheiros, honrando a promessa, tantas vezes repetida, de vencer ou morrer.
Doeu – e como! – vermos os militares exibindo seu cadáver como troféu, da forma mais selvagem e repulsiva.
Mas, ele havia conquistado plenamente o direito de desconsiderar fatores políticos e decidir apenas como homem se preferia viver ou morrer.
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O FILHO DO SAPATEIRO E OS REBENTOS DAS CLASSES PRIVILEGIADAS – Foi no já citado congresso de abril de 1969, quando a VPR juntava os cacos após uma temporada de luta interna e quedas, que o conheci. Eu estava lá como representante de um grupo de oito secundaristas que havíamos decidido ingressar na Organização, mas dependíamos ainda da palavra final do novo Comando a ser eleito naquele encontro.
Aspirante a oficial, finalmente. Mas logo a carruagem viraria abóbora... |
Minha impressão sobre o Lamarca foi a melhor possível. Filho de sapateiro, aos 16 anos participara de manifestações de rua da campanha nacionalista O petróleo é nosso e em 1955 ingressara numa escola preparatória de cadetes, passando dois anos depois para a Academia Militar de Agulhas Negras.
No final de 1969, quando, em cinco militantes, avaliávamos um sítio próximo a Jacupiranga como possível base para a instalação de uma área de treinamento guerrilheiro (acabaria sendo vetado), ele nos contou que, ingenuamente, tinha a ilusão de que o Exército seria uma força imparcial e democrática, daí o grande esforço que fez para formar-se aspirante a oficial em 1960.
Seus concorrentes eram quase todos de famílias prósperas e haviam cursado escolas bem caras e melhores. Mesmo assim, conseguiu ser o 46º dos 57 aprovados, o que os detratores depois utilizariam para o desqualificar. Na verdade, tinha até superado as expectativas.
Mas, não foi recebido como um igual pelos oficiais vindos das ditas camadas superiores da sociedade, passando, então, a desprezá-los; seus amigos na caserna eram sobretudo cabos e sargentos. E tinha muita compaixão pelos recrutas, referindo-se amiúde a eles, nas nossas conversas, como filhos do povo.
Em 1962 foi designado para integrar as Forças de Paz da ONU no Canal de Suez e aqueles 18 meses foram decisivos para suas escolhas posteriores: a maneira como os árabes eram tratados e a miséria a que estavam submetidos o indignaram profundamente. Disse-nos que detestava ter de permanecer neutro diante de tudo aquilo, quando morria de vontade de abraçar a causa dos árabes.
Já sob a ditadura militar, teve a lealdade colocada sob suspeita quando um capitão brizolista que estava sob a sua guarda fugiu em dezembro de 1964. Mas, seu comandante na PE gaúcha se responsabilizou por ele, mantendo-o a salvo dos caçadores de bruxas. Era respeitado como oficial sério no cumprimento do dever e como um dos principais atiradores de elite nas competições de tiro da caserna.
Estes eram os integrantes da base em Quintaúna |
Em Quintaúna, contudo, reencontrou o sargento Darcy Rodrigues, uma figurinha carimbada que já conhecia do passado e que realizava o trabalho de politização no quartel.
Darcy o aproximou da esquerda organizada e, graças à ajuda de Carlos Marighella, Lamarca conseguiria enviar mulher e filhos para Cuba, preparando-se para em seguida deixar aquela unidade juntamente com os três integrantes da base que formara lá dentro.
Teve de realizar a operação de afogadilho porque o plano estava na iminência de ser descoberto, mas conseguiu levar consigo 63 fuzis FAL e três metralhadoras leves, em 24 de janeiro de 1969.
Naquele congresso em Mongaguá, com 31 anos, ele aparentava mais idade e sua nova condição na esquerda não lhe inspirara nenhum estrelismo.
Era modesto, tratava bem os companheiros, lia muito os clássicos do marxismo para adquirir conhecimento comparável ao dos integrantes mais intelectualizados da VPR e estava ansioso por atuar: a situação de dirigente preservado em função de sua importância para a causa o exasperava visivelmente, embora tentasse não dar tanto na vista. Não via a hora de montar a coluna móvel estratégica.
Esta era sua grande contribuição aos planos da VPR. Ele considerava impossível, no Brasil, repetir experiências como a da China (o exército popular se formando nos campos e cercando as cidades para a tomada do poder) ou de Cuba (o mesmo desfecho, mas tendo como ponto de partida o foco guerrilheiro).
Lamarca mostrava querer muito Iara Iavelberg e recebia com azedume as críticas a tal relacionamento |
Essa coluna não recrutaria na região nem procuraria crescer numericamente. Seu objetivo seria propagandístico: provar que o Exército, tido como invencível, poderia ser derrotado, ainda que em meras escaramuças.
Mas, a coluna travando combate (quando as circunstâncias fossem favoráveis) e sobrevivendo para lutar de novo seria um alento para que grupos revolucionários fossem se formando no país inteiro e agissem também, até a conquista do poder ocorrer como resultado da somatória de todas essas iniciativas independentes.
No cerco do Vale do Ribeira, em abril de 1970, Lamarca pôde constatar que, mesmo assim, a inferioridade de forças continuava determinando o resultado final. Descoberta a escola de guerrilha com 17 militantes, ainda houve tempo para ele despachar oito para a cidade pelos transportes normais, enfurnando-se na selva com os nove restantes.
O Exército mobilizou contra eles algo entre 2.500 soldados e o dobro disto (as versões variam), além de um sem-número de helicópteros. Dois companheiros foram presos e o restante escapou naquela que deveria ser, mas não é, reconhecida como uma das maiores façanhas militares realizadas por combatentes brasileiros em todos os tempos.
Mas, se Lamarca tirou coelho da cartola, o certo é que a coluna móvel estratégica, embora não da forma como ele pretendia, entrou em ação e, constatada a impossibilidade de sobreviver, teve de se desmobilizar para salvar a pele dos seus integrantes.
Uma rara foto com a família antes que partisse para Havana |
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UM ADENDO SOBRE A CAMPANHA MIDIÁTICA DE DIFAMAÇÃO EM 2007– Por último, um esclarecimento. Quando preso, detonado e quase destruído aos 19 anos de idade, fiquei indignado com o Lamarca pelo fato de, mesmo sabendo da verdade, ele haver consentido com (e corroborado) a versão conveniente de que a segunda área de treinamento no Vale do Ribeira, na qual eu nem sequer estivera, teria sido delatada por mim.
A estigmatização decorrente, eu supunha, praticamente encerraria minha trajetória como revolucionário. Além disto, fui deixado à mercê do inimigo ao não incluírem-me na lista de presos políticos a serem trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, o que me acarretou um novo período de torturas e um tímpano estourado.
Levei 34 anos até conseguir tornar amplamente conhecida a verdade dos fatos e recuperar minha credibilidade (embora não tenha ficado inerte durante todo esse tempo, vale acrescentar).
E uma luta que travei no período 2004/2005 me permitiu tomar conhecimento do que acontecera na VPR no período da minha prisão. Fiquei sabendo o quanto as quedas em cascata de abril de 1970 a haviam abalado e deduzi o resto.
Ou seja, que naquele momento, caso se chegasse ao conhecimento da esquerda em geral que quem delatara a informação mais importante que a VPR detinha era comandante nacional, como conseguir repor os quadros que perdera, atraindo recrutas e apoios desesperadamente necessários? Quem, ciente disso, ingressaria numa Organização com segurança tão precária?
Convinha, portanto, que a culpa recaísse com um jovem pouco conhecido fora da VPR, que nem sequer pertencia a alguma família de esquerdistas ilustres. A decisão de relegar-me à estigmatização não se devera a motivos fúteis, mas objetivava ajudar a VPR a sobreviver a uma crise quase terminal.
Tive de refletir bem sobre passado e presente quando a direita, com o apoio servil da grande mídia, fez em 2007 campanha cerrada e das mais falaciosas contra o Lamarca, por ter a Comissão de Anistia decidido que sua família deveria, com promoções incluídas, receber pensão de coronel, ascendendo a general de brigada pela passagem à reserva. Motivo: um governo ilegal, fruto de um golpe de Estado, o executara a sangue-frio.
Considerei repulsiva a campanha e inaceitável que nenhum dos companheiros mais próximos do Lamarca o estivesse defendendo dos ataques na imprensa. Mas, não causaria estranheza ser logo eu a zelar por sua memória?
No entanto, o que acontecera em 1970 não tinha o mesmo peso para ambos. No caso de um revolucionário que tinha formação anti-stalinista, como eu, era simplesmente inconcebível tamanho falseamento da verdade, em detrimento da dignidade de um militante honesto. Mas, o Lamarca era sobretudo um pragmático, priorizava a causa, tendo ele próprio feito sacrifícios extremos em nome do seu ideal.
Lembrei-me de quando, na área de treinamento, ele recebia cartas vindas de Cuba, ia para um canto e quase chorava, inconformado com as notícias sobre como seus filhos evoluíam e o quanto ele estava perdendo ao não presenciar isso. Só depois de horas conseguia aparentar normalidade, mas percebíamos que a tristeza ainda o remoía.
E, claro, não poderia esquecer que ele entregara a vida, recusando as hipóteses de salvação que lhe foram
oferecidas pelo MR-8. Celso Lungaretti na época da VPR
Resolvi, então, assumir o papel de principal defensor da imagem do Lamarca e dos direitos de sua família, confrontando a grande mídia (vide http://www.observatoriodaimprensa.com.br/diretorio-academico/muito-barulho-por-nada-9228/), porque era a atitude que a consciência me ditava.
(por Celso Lungaretti, jornalista, ativista político, militou contra a Ditadura militar, milita atualmente pelo impeachment de Jair Bolsonaro. Texto publicado originalmente no blog Náufrago da Utopia)
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