Um retrato histórico da resistência e identidade nordestina, refletindo sobre o legado de lutas, símbolos e personagens que moldaram a região. Nortistas e nordestinos queriam colocar um conselho federativo com um voto por Estado.
Por Urariano Mota – de São Paulo
A direita brasileira ainda esperneia, muito. A volta à presidência do estadista Lula, um dos maiores do mundo, acende raiva e ódio dos nazistas nacionais. E na barbárie e ignorância características dos fascistas até hoje, cometem coices do gênero:
“Outras regiões do Brasil, com Estados muito menores em termos de economia e população se unem e conseguem votar e aprovar uma série de projetos em Brasília. E nós, que representamos 56% dos brasileiros, mas que sempre ficamos cada um por si, olhando só o seu quintal, perdemos….
Nortistas e nordestinos queriam colocar um conselho federativo com um voto por Estado. Mas nós queremos proporcional à população. Por que sete estados em 27, iríamos aprovar o quê? Nada. O Norte e Nordeste é que mandariam. Aí, nós falamos que não. Pode ter o Conselho, mas proporcional. Se temos 56% da população, nós queremos ter peso equivalente”.
Esqueça-se, por favor, que o primitivo entre aspas nem sabe contar. Se ele conseguisse a façanha de relacionar aos números naturais Bahia, Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão, descobriria que são nove. Mas, para o inominável aspado, os estados nordestinos são noves fora zero. Em geografia, história e política.
O Nordeste
Primeiro, de um ponto de vista da história econômica, Celso Furtado já havia diagnosticado que, na industrialização do Brasil nos anos 50, o Nordeste foi espoliado pelo Estado brasileiro para financiar o crescimento do Sudeste. Como lembra a lúcida Tania Bacelar: “Naquela época, o Nordeste tinha uma balança comercial com o exterior positiva, e o Brasil tinha uma política cambial que era correta, mas tirava a vida do Nordeste. Eram duas taxas de câmbio: quem importava equipamentos tinha câmbio mais barato”. Nas palavras de Celso Furtado: “os superávits comerciais do Nordeste com o exterior eram utilizados para financiar as importações da região Centro-Sul do Brasil”. E nesse caso, valia o princípio federativo, arrancar dos nordestinos para o Centro-Sul. Mas agora, nos coices de Zero, não. O fascismo contra nordestinos eleitores de Lula fala mais alto.
Daí que retiro de texto anterior sobre a identidade pernambucana: a partir da história, devemos compreender por que somos desta maneira e de outras. E mais, esta descoberta que se apoia em fatos vivos: a história é tão entranhada, que acontecimentos mais recentes manifestam instantes de mais de cem anos. Se não, acompanhem por favor o caso do Hino de Pernambuco, música, quase diria “frevo”, de1908. Testemunhem o “absurdo”. Esse hino histórico virou sucesso de carnaval, dos mais modernos carnavais, nos dias de hoje.
Lindo, permitam-me dizer. Vozes se levantam na multidão como uma revolta em comícios políticos. Pessoas cantam o hino de Pernambuco em pleno Marco Zero, algumas “fantasiadas” com a bandeira do estado:
“Coração do Brasil, em teu seio
Corre sangue de heróis, rubro veio
Que há de sempre o valor traduzir
És a fonte da vida e da história
Desse povo coberto de glória,
O primeiro, talvez, no porvir
Salve ó terra dos altos coqueiros!
De belezas soberbo estendal!
Nova Roma de bravos guerreiros
Pernambuco, imortal! Imortal!”
Sobre esse fenómeno escrevi de passagem no romance “A mais longa duração da juventude” em determinado trecho. Nele, o personagem Gordo se ergue da mesa onde os amigos bebiam, e em posição respeitosa canta alto o Hino de Pernambuco. “Salve ó terra dos altos coqueiros…”. Foi eletrizante. O bar inteiro se levantou. Foi de embriagar, ao delírio, ver a pequena multidão de bêbados cantando em uma só voz, todos em pé, num coro comovente, toda a Portuguesa sob a regência do Gordo no meio da madrugada. Quando acabou aquele instante cívico no álcool, todos os personagens se sentaram. Por que o Gordo cantou o Hino de Pernambuco na madrugada? Aquilo era um hino, que se tornou momento de resistência à ditadura.
Revolução Pernambucana de 1817
Mas voltemos um pouco antes, à bandeira de Pernambuco usada por foliões durante o carnaval. Acreditem, a sua origem vem da Revolução Pernambucana de 1817. A bandeira foi criada antes da independência para ser a bandeira do Brasil sob um regime republicano. Hoje, ela vai além do carnaval. Falam até mesmo, em mais de uma pesquisa, que é a mais bonita do Brasil, mais linda e patriótica que a bandeira brasileira.
Essa é a bandeira agitada no ar, nas arquibancadas de estádios de futebol, por torcedores pernambucanos de qualquer time, Sport, Santa Cruz ou Náutico, por todo o Brasil. Uma bandeira que é de todas as torcidas, de todos pernambucanos no mundo.
E quando mencionamos a origem da bandeira na revolução de 1817, ela nos leva a um dos seus heróis, o Frei Caneca. Preso durante quatro anos, retornou às lutas até a morte em 1825. No dia 13 de janeiro desse ano, três carrascos se negaram a enforcá-lo, e por isso foi executado a tiros de aracabuz sob ordens militares. Nos autos do processo, foi indiciado como um dos chefes da Confederação do Equador com estas palavras: “escritor de papéis incendiários”. E o que era acusação infamante se tornou honra, como podemos ver no seu belo poema aqui:
“Entre Marília e a pátria
Coloquei meu coração:
A pátria roubou-m’o todo;
Marília que chore em vão.
Quem passa a vida que eu passo,
Não deve a morte temer;
Com a morte não se assusta
Quem está sempre a morrer.
A medonha catadura
Da morte feia e cruel,
Do rosto só muda a cor
Da pátria ao filho infiel.
Tem fim a vida daquele
Que a pátria não soube amar;
A vida do patriota
Não pode o tempo acabar.
O servil acaba inglório
Da existência a curta idade:
Mas não morre o liberal,
Vive toda a Eternidade!”
E por isso dizemos ao fim: Pernambuco é Nordeste, e o Nordeste é Brasil. Deixemos aos cavalos os verdes campos da pátria.
Urariano Mota, é Jornalista do Recife. Autor dos romances Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude.
As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil