Pela televisão, no celular ou ao vivo, a atração permanece: o povo brasileiro gosta de circo, mesmo se os atores e o palhaço não estão fantasiados. Bom mesmo é o circo com trapézio e picadeiro, mas mesmo em cima de uma jamanta, fechando o trânsito num domingo, pode atrair muita gente. E ir ao circo vestido de canarinho excede de longe toda beleza da cafonagem.
Por Rui Martins
E se o pastor Malafaia virasse candidato a presidente?A palhaçada da mulher saltitante, do homem que chora, de outros que berram, todos indo e vindo em cima da palco restrito e elevado para saudar o público, como animais encurralados num quadrado de grades (seria premonição?), é melhor do que Morte e Vida Severina no Municipal. Não há mugidos, mas a longa e larga avenida parece um curral.
É mais do que ridículo, grotesco e insano ouvir a periquita Michele Bolsonaro, mas poderia até ser blasfêmia, falar na perseguição sofrida por ter um marido perseguido por exaltar e colocar Deus e acima de tudo! Tudo parece pacífico, mas - poucos crentes devem ter percebido - ali não se fala em mensagem cristã de amor mas no Deus potente e guerreiro do Velho Testamento bíblico, ao qual se deve entregar a política do país. Uma maneira discreta de se semear a perigosa ideia de uma teocracia evangélica.
Nessa altura, o circo já se transformou também em show e igreja, no estilo importado norteamericano, sem procissão mas com oração. Tudo parece irreal, nada do que Michele falou se refere às reais necessidades do povo, são apenas palavras, invocações e glórias, como se o povo sofrido só precisasse mesmo de céu...
A apoteose veio com o pastor Malafaia, cujos gritos a ponto de provocar-lhe uma rouquidão, se confundiam com acessos histéricos de santo ódio, no seu desafio ao poder temporal constitucional e judicial. Seriam assim os gritos de Antônio Conselheiro levando à destruição o crédulo povo em Canudos?
Qual o papel do grito num discurso ou numa pregação? Intimida o ouvinte e provoca o acordo e a adesão? Desejoso de ser preso, imaginando assim se tornar um símbolo e líder, Malafaia lança o desafio a Moraes e ao STF para que venham prendê-lo. Machão ou farsante? Com essa linguagem de ódio, seria um mensageiro de Deus ou do Capeta? Ou de um profeta enfurecido? Seria uma versão soft do Rasputin?
O tom baixa com Bolsonaro fazendo uma confissão golpista e decidido a propor o entendimento e a pacificação, até com Moraes! e mesmo uma anistia geral...Para quem? Para os condenados às duras penas por envolvimento no quebra-quebra de prédios dos Três Poderes. Mas principalmente e por tabela, essa anistia seria para ele mesmo, diante do risco crescente e próximo de prisão.
Terminado o show, vê-se que a força da extrema-direita bolsonarista não acabou, talvez nem tenha diminuído. As últimas declarações de Lula sobre Gaza foram muito exploradas por seus inimigos e parecem ter revitalizado os evangélicos. E custado até uma fatia no eleitorado de Lula.
Durante a queda do comunismo na URSS, alguns líderes procuraram amenizar o discurso anticlerical, porém o resultado foi um fortalecimento da igreja ortodoxa russa dentro de um quadro semelhante ao brasileiro - devoção religiosa com nacionalismo.
Quantos canarinhos encheram algumas quadras da avenida Paulista? Muitos. De acordo com um método e tecnologia usados pela Universidade de São Paulo, implicando uso de drones, fotos dos quarteirões e um software para contar cabeças, havia 185 mil pessoas. A metodologia usada pela Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, dirigida pelo bolsonarista Guilherme Derrit, o temido ex-comandante do Pelotão da Rota, aponta um resultado exagerado de 750 mil.
Depois de terminada a manifestação, menor do que a esperada pelos bolsonaristas (eles esperavam mais de milhão), apareceu numa rede social anti-bolsonaro uma perigosa hipótese para 2026: Silas Malafaia e Michele Bolsonaro para presidente e vice, com a missão de anistiarem o ex-presidente Bolsonaro e trazerem o Reino de Deus e a teocracia para o Brasil. Com o apoio de Donald Trump, que, nessa altura, já seria de novo presidente.
Depois do circo, show de igreja, oração, gritaria, canarinhos e cafonalha, seria a hora para se sentar e ver a versão apocalíptica de um filme de terror!
Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.