O Direto da Redação, um fórum de debates, está publicando uma sequência alternada de quatro opiniões de comentaristas do blog Náufrago da Utopia sobre as próximas eleições. Opiniões diferenciadas e mesmo opostas. O editor do blog, Celso Lungaretti, fez uma síntese dessa inciativa: é a oportunidade de transmitir e defender suas visões numa tribuna comum, tanto que tem como principais bandeiras a justiça social, a liberdade, os direitos humanos e o pensamento crítico. Somos contra o monolitismo, o pensamento único e a aberração de encarar como inimigos aqueles que são apenas nossos adversários circunstanciais, mas ocuparão conosco a mesma trincheira, como bons aliados, quando o enfrentamento do inimigo comum o exigir. Então, ao expormos aqui os posicionamentos específicos de nós quatro sobre a eleição presidencial de outubro, estamos dando um exemplo de como se pode trabalhar em conjunto e discutir civilizadamente com quem não reza de cabo a rabo pela mesma cartilha, mas, mesmo assim, continua sendo nosso companheiro de lutas e amigo no dia a dia.
3. Dalton Rosado
Sobre as eleições burguesas. Confesso que o noticiário politico-eleitoral me enfastia.
Parece-me a repetição de um filme velho e ruim da sessão coruja, no qual uma junta médica analisa demoradamente a unha encravada de um paciente com câncer terminal, evitando o tratamento do segundo problema, aquele que já não podem resolver.
A atenção que eles dedicam à unha encravada simboliza o combate da corrupção estatal e as diferenças de estilo sobre seu tratamento, no receituário da direita e da esquerda, enquanto evitam enfrentar a metástase, representa o medo de discutir o capitalismo deprimido e sem volta, juntamente com seu Estado falido, como decorrência dessa mesma depressão.
O processo eleitoral nada mais é do que o canal de legitimação juridico-político de um poder político serviçal de uma relação social escravista e decadente, na qual o povo é chamado para dar o seu aval como se isto representasse uma faculdade emancipada de livre escolha.
Não é. O povo escolhe dentre aquilo que já lhe foi escolhido; comporta-se como um mero juiz homologador de uma opção anteriormente decidida por uma ordem jurídico-constitucional que serve ao capital e que lhe é estanha (ou deveria ser).
O fetiche capitalista é tão forte e enraizado nas mentes populares que o povo crê na balela de que ele pode ser bom ou mau, dependendo do governante estatal. Como se padecesse da síndrome de Estocolmo, o escravizado ama o instrumento de sua escravização sem questionamento, sendo a eleição o altar de celebração desse fetiche.
Não há nenhuma possibilidade de um governante alterar a essência da relação capitalista por dentro, ou seja, funcionar como uma bactéria capaz de debilitar ou destruir o organismo estatal no qual se instalou; antes é expulso dela.
Caso se insurja contra as regras cartesianas constitucionais que delimitam o pequeno espaço de discricionariedade das verbas fiscais arrecadadas e, ao usá-las, abandone os compromissos institucionais de manutenção a governabilidade serviçal do capital, será cassado (quiçá caçado).
Assim, ele não governa, mas é governado por regras constitucionais e por uma lógica capitalista que lhe dá ordens, tal qual um empresário privado na administração do seu negócio, ao tomar decisões condicionadas pelo imperativo de manter vivo e viável o dito cujo.
O capital dá ordens aos políticos e até mesmo ao capitalista que, na sua adoração ao totem que mantém seus privilégios, cumpre fielmente as regras inumanas e insensíveis da administração mercadológica da produção e comercialização das mercadorias.
Salvador Allende, eleito democraticamente no Chile, é um bom exemplo de governante que direcionou o seu governo no sentido da ruptura com o capital e se transformou num mártir da luta política, com seu assassinato sendo engendrado desde Washington pelo arautos da democracia burguesa, tendo como executores os oficiais de uma casta militar ávida de poder submisso e subserviente ao capital.
João Goulart, no Brasil, com seu populismo trabalhista de aliança com a esquerda sindical, mesmo anunciando tímidas reformas de base, teve de sair fugido e deposto sob pena de ser morto caso oferecesse resistência armada.
Quando, como novo secretário de finanças de Fortaleza, fiz uma análise cuidadosa da receita fiscal daqueles dias anteriores à Constituição de 1988 (a administração popular cumpriu mandato-tampão de 1986 a 1988), tive de concluir pela necessidade de negar direitos trabalhistas que havia defendido, pelo simples fato de que não havia dinheiro suficiente para o pagamento.
Mas a coisa não parava por aí. Com a inflação galopante do Governo Sarney e consequentes majorações do preço dos combustíveis, pneus, peças e outros insumos do transporte, precisávamos dar aumentos constantes das tarifas de passagens de ônibus sob pena de um colapso do sistema de transportes, e tais custos antecediam o reajuste de salários dos trabalhadores.
Entre aumentar os preços das passagens para uma população que sofria com o confisco salarial em face da escalada inflacionária (de 980,21% no ano de 1988, sob Sarney) e o colapso de todo o sistema de transportes, qualquer opção seria desastrosa.
Então, embora todos nós fôssemos governantes de esquerda, inexistia outra saída que não fosse a de, a contragosto, escolher um dentre tais males. Constrangidos, obedecemos a uma lógica capitalista que considerávamos adversa.
O governante, tal qual um surfista, se equilibra na onda, mas não tem o poder de alterá-la.
O eleitor nacional, diferentemente do regional, raciocina pelo bolso e vota de acordo com seu nível de bem-estar; é por isto que Boçalnaro, o ignaro, está ferrado.
A mesma população que atribuiu seu infortúnio à corrupção (com os showzinhos da Polícia Federal sendo transmitidos ao vivo pela TV) e, nessa onda, elegeu um político do baixo clero, ignorante, oportunista e defensor de tudo que é postura anticivilizatória, agora corretamente o repudia.
Mas nada nos garante que o novo eleito tenha a capacidade de promover a transformação fundamental da vida difícil do povo que o elegerá.
Será que esta postura superficial de análise, fruto de um processo midiático igualmente superficial e aliada a uma ideia equivocada sobre a capacidade de intervenção do governante na realidade de uma relação social capitalista decadente (e que mesmo antes dessa decadência era ruim e segregacionista) não é premeditadamente construída por um processo eleitoral que faz muita espuma mas concorre para que nada mude efetivamente?
Será que, por medo da ditadura (que, mesmo na chamada modernidade, continua sendo utilizada pelo capital para a manutenção do status quo decadente mediante o uso da força e amordaçamento da manifestação de contrariedade social), devemos nos conformar com a eterna postergação da ruptura com aquilo que nos escraviza e limita, aceitando o me engana que eu gosto eleitoral como opção por um mal menor?
Compreendo e respeito a posição dos meus colegas colaboradores deste blog no sentido de aproveitar o período eleitoral para promover a educação libertadora e denunciar as falácias políticas, sejam elas ditatoriais ou populistas e enganadoras, alertando os eleitores sobre aquilo que o novo eleito jamais poderá efetivar como medida de governo, mesmo o desejando fervorosamente.
Aceito que existam candidatos bem intencionados, os quais poderão minorar o sofrimento do povo a partir de políticas públicas que venham a ser implementadas, mesmo diante de todas as dificuldades de ordem material e ideológica a serem por eles enfrentadas para concretizarem tal intento; e que poderemos denunciar, de nossa tribuna libertária, os desvios que venham a ocorrer, contribuindo assim para a conscientização sobre o processo de ruptura necessária e inadiável.
Mas aqui estamos tratando de estratégias e táticas de transformações dentro de um objetivo comum, a superação de uma relação social injusta como a que temos, e dentre estas não podemos descartar a negação do voto – um posicionamento que, evidentemente somente seria hegemônico a partir de um processo de conscientização que ainda não desenvolvemos.
Mas, mesmo sem ter o dom de Aleteia, a deusa da verdade na mitologia grega, insisto em negar a armadilha democrática burguesa do voto.
Com a máxima vênia dos companheiros do blog, estes são os argumentos pelos quais eu NÃO VOTO!. Por Dalton Rosado. (Publicado originalmente com a iconografia do blog Náufrago da Utopia)
Direto da Redação é um fórum de debates publicado no Correio do Brasil pelo jornalista Rui Martins.