Há muito tempo que, no Brasil, a profissão de vice tornou-se perigosa por fazer contraponto aos "titulares".
Por Flávio Aguiar - de BerlimObservar as coisas de longe tem uma vantagem: vez por outra a gente consegue se desapaixonar das próprias opiniões e de sua medida com a pátria de origem, e ver as coisas de modo mais distanciado, inclusive no tempo. Nem de longe estou desprezando quem está no fogo da trincheira próxima daquela do inimigo em frente. Pelo contrário, estas observações que se seguem pretendem ser uma contribuição para a sua munição. Mas a de calibre grosso, diferente da do tiroteio do dia a dia.
O general Mourão transformou-se numa bomba – e prestes a explodir – dentro do governo do Jair e de sua famiglia e que inclui muita gente, não apenas os parentes de sangue. A máfia, melhor definindo, convive com "primos" distantes, como Steve Bannon, e próximos, como Sergio Moro, Deltan Dallagnol e o PSDB, que assinou mais uma vez seu epitáfio ao votar para a eleição de Davi Alcolumbre para a Presidência do Senado e assim levar o ungido Flávio Bolsonaro à mesa diretora, levando esta ainda mais pra perto de um imbróglio com milícias assassinas do Rio de Janeiro.
Não tenho a menor simpatia pelo general Mourão. Estou tentando entender o seu papel histórico. E faz muito tempo o papel histórico dos "vices" vem sendo o de fazer um contraponto aos "titulares". Ser vice tornou-se uma profissão perigosa – para quem é titular. Senão, vejamos.
No Império não havia vices. Mesmo assim, como Regente, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, terminando a escravidão, sem indenizar os proprietários de escravos. Isto afastou-os do Império, e este caiu.
Floriano Peixoto foi vice do Marechal Deodoro. Renunciando este, assumiu a Presidência e instituiu um governo extremamente repressivo. Tornou-se o "Marechal de Ferro".
Na República Velha predominou o compadrio entre Minas Gerais e São Paulo. Rompido este, Getúlio subiu, para o mais longo mandato da República Brasileira, só superado pelo de Dom Pedro II, no Império.
Quando voltou ao poder, Getúlio teve como vice, Café Filho, do Rio Grande do Norte, que o traiu. Curiosamente, Café Filho, devido a estas regiões pantanosas da então política nordestina, tinha ligações pela esquerda, até com o Partidão. Tornou-se um vice de direita, traiu Getúlio e sua memória e foi triste participante da tentativa de impedir a posse de Juscelino, no ano seguinte ao do suicídio de Vargas.
A seguir, Jânio foi eleito. Seu vice era Jango, dileto filhote político de Getúlio. Naquela época a eleição do presidente e a do vice eram separadas na cédula. Jânio era candidato pela UDN. Jango pelo PTB. Mas havia quem defendesse a chapa Jan-Jan, assim chamada, inclusive meu pai, que votou nela. Quando Jânio renunciou, embaído pela ilusão de que o povo o reconduziria ao poder, Jango assumiu, vindo da China, onde estava.
Como não tinha vice, seu sucessor era Rainieri Mazzili, presidente da Câmara de Deputados e do Congresso, que foi votado como presidente porque Jango, em meio a um golpe militar, "abandonara a capital sem licença do Legislativo (!)".
Deu no que deu: Castelo Branco na cabeça, 21 anos de ditadura militar.
No meio desta, houve a proclamação ao, entre outros, do Ato 5. Único voto contra: Pedro Aleixo, vice de Costa e Silva. Quando este caiu doente, foi preciso impedi-lo de assumir a Presidência. Assumiu uma junta militar.
Depois, anos mais tarde, assumiu o primeiro presidente eleito por voto direto depois do golpe, Fernando Collor. Seu vice, Itamar Franco, assumiu a presidência quando o titular sofreu o impeachment.
Antes dele, houve Tancredo, que caiu doente na véspera de sua posse e veio a falecer dias depois, levando seu vice, José Sarney, a tornar-se presidente.
Para completar este roteiro improvisado, Temer deu o golpe em Dilma.
Ou seja, vice é fogo.
Agora, Mourão parte para a ofensiva, desautorizando políticas e declarações da ala mais aloprada do governo de Bolsonaro, isto de Embaixada em Jerusalém, políticas evangélicas, beija-mão de Bannon, Bolton e Trump.
Isto vai levar a um confronto. Se tal acontecer, Bolsonaro e suas milícias religiosas, junto a outras, não são páreos para Mourão e a caserna que o ampara, mesmo que esta se manifeste, ainda, sob o pijama dos generais da reserva, na maioria.
Enfim, vamos ver o que vai acontecer. Boa coisa não será. Mas não seria pior do que o que aí está.
Se Mourão avançar, tudo vai ruir como um castelo de cartas: os Bolsos, Moro – este juiz de segunda mão e aprendiz inepto de ministro –, até o Guedes, um Roberto Campos diminuído.
Aqui na Europa reina o desânimo em relação ao Brasil. E da esquerda à direita. Mas se isto vai se traduzir em solidariedade com a democracia brasileira, é outra história. Porque em todos os quadrantes ideológicos, com poucas exceções, reina uma pílula sedativa: o Brasil voltou ao casulo de onde não deveria nunca ter saído, aquele reservado às republiquetas bananosas.
Flávio Aguiar, é jornalista correspondente internacional em Berlim. As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil