Amazonas tem 55 presos mortos em penitenciárias do estado em dois dias. Enquanto governo vê criação de novas vagas como solução, especialistas advertem que encarceramento em massa fomenta o crime organizado.
Por Redação, com DW - de Brasília
Na manhã do último domingo, o período de visitas no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, geralmente um momento pacífico, foi interrompido por um corre-corre. Parentes de presos fugiram do local às pressas em meio a um confronto entre os detentos.
No fim da tarde, veio o saldo: 15 presos mortos, alguns enforcados e outros atingidos por objetos perfurantes feitos a partir de escovas de dente, segundo o governo do Amazonas.
No dia seguinte, descobriu-se que a matança era ainda maior. Mais 40 corpos foram encontrados em presídios do estado, sendo quatro no Compaj. A carnificina não foi uma surpresa, mas sim, mais um dos vários sinais que o caos nos presídios brasileiros emite.
Nos últimos anos, se tornou comum especialistas e autoridades usarem o termo "bomba-relógio" para designar a situação das penitenciárias. Dados e fatos ajudam a entender o motivo.
O Ministério da Justiça não divulga o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias desde 2016, mas números do Monitor da Violência, parceria entre o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o portal G1, mostraram no mês passado que há atualmente mais de 750 mil presos no Brasil, mas vagas para apenas 415 mil deles.
A superlotação é acompanhada de condições precárias de alimentação e higiene, o que facilita a proliferação de doenças. Os altos índices de tuberculose nos presídios consistem numa "emergência", segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS).
O Estado também não consegue garantir a segurança dos detentos. Casos de tortura, violência sexual e homicídios são constantes. Em muitos presídios, o controle de fato das unidades está com as facções criminosas.
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) classificou esse cenário de "estado de coisas inconstitucional" por conta das violações a direitos fundamentais presentes nas penitenciárias. Dois anos depois, em janeiro de 2017, a violência explodiu. Nos primeiros 15 dias daquele ano, uma guerra de facções que se espalhou pelo país deixou 133 detentos mortos, sendo 56 no Compaj, palco também da matança deste domingo.
Vácuo de legalidade
Para o juiz Luís Carlos Valois, titular da Vara de Execução Penal de Manaus, o caos é resultado do pensamento de curto prazo que rege a política brasileira. "As pessoas administram penitenciárias mais preocupadas com o emprego do que com a vida dos presos", afirma.
De licença do cargo por conta de um pós-doutorado desde 2018, Valois ajudou a mediar o fim do conflito que deixou 56 mortos no Compaj em 2017. Ao entrar no local, se deparou com uma pilha de braços e pernas dos mortos, que foram esquartejados.
Ele critica o fato de o Estado brasileiro não conseguir dar condições mínimas de saúde, segurança e trabalho para os presos. "Se você tem uma instituição que não cumpre a lei, você tem um vácuo de legalidade, e se estamos falando de um vácuo de legalidade onde há seres humanos, você pode se preparar para acontecer qualquer coisa", afirma.
Valois critica também o fato de os debates sobre o sistema prisional e sobre segurança pública ocorrerem, muitas vezes, em trilhas separadas no Brasil. O magistrado desaprova o que chama de "populismo penal", a ideia de recrudescer penas e ter como foco das ações de segurança pública atos como compra de armamentos e viaturas.
– Pouco se fala das péssimas condições de trabalho do policial e das delegacias ou da precariedade da investigação – diz. "A segurança pública hoje é uma fantasia, porque ou a polícia prende em flagrante ou se resume a fazer um boletim de ocorrência, e as pessoas se satisfazem com a quantidade das prisões em vez da qualidade."
Thandara Santos, integrante do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), faz avaliação semelhante. Ela destaca que o Brasil prende muito, mas que impunidade é uma realidade.
Isso ocorre, afirma, porque a taxa de elucidação de crimes graves, como homicídios, por exemplo, é baixa, enquanto muitos dos presos estão encarcerados por crimes de menor potencial ofensivo, como porte de pequenas quantidades de drogas ou crimes não violentos.
Essa realidade atinge desproporcionalmente as camadas mais pobres da população, os dados oficiais do governo, de 2016, mostraram que 64% dos presos eram negros, 55% tinham menos de 29 anos, e 41% não completaram o ensino fundamental.
Para a analista do FBSP, a forma e a quantidade de prisões realizadas no Brasil têm como consequência uma piora da segurança pública. "A política do encarceramento em massa permite o recrutamento por parte das facções criminosas, então ao fazer isso estamos promovendo o crescimento de grupos que vão se articular para atuar nas cidades", afirma.
Criação de vagas como foco
O atual governo não aceita o diagnóstico dos especialistas. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, assumiu o cargo em janeiro focado em combater o crime organizado, em especial o de "colarinho branco". Sua principal iniciativa é o chamado "pacote anticrime", que traz ações para lidar com organizações criminosas, com os objetivos de prender os integrantes, isolar as lideranças e confiscar bens desses grupos.
No caso dos presídios, o foco de Moro está na criação de mais vagas no sistema prisional. Em abril, o Ministério da Justiça e Segurança Pública informou que no primeiro trimestre de 2019 foram abertas 2,8 mil novas vagas no sistema penitenciário em quatro estados. A meta para o período até 2022 é criar entre 100 mil e 150 mil novas vagas pelo país.
Uma Medida Provisória a ser lançada em breve deve facilitar isso. A ideia é acelerar a venda dos bens confiscados e contratar provisoriamente engenheiros que possam supervisionar as construções de presídios, mostrou apuração da Folha de S.Paulo. Segundo Moro, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), que responde à sua pasta, tem apenas três engenheiros concursados e 250 projetos na fila.
Santos critica a abordagem de Moro. "A construção de vagas, além de ser uma política muito onerosa para o Estado, não qualifica a porta de entrada do sistema, não busca tentar entender se todas as pessoas que estão ali realmente precisariam estar presas", diz.
A porta de saída do sistema prisional também é motivo de disputa. O pacote anticrime de Moro, assim como outros projetos que tramitam na Câmara, prevê o aumento de penas, a antecipação do cumprimento de sentenças, e dificulta a progressão de regime para certos apenados. "Essas medidas têm potencial para aumentar o encarceramento", afirma a analista.
Para completar o quadro caótico do sistema prisional, uma parte significativa dos presos ainda não tem condenação definitiva. É o caso de 36% dos detentos, mais de 250 mil pessoas, de acordo com o Monitor da Violência de 2019.
No último dia 15, o Depen assinou um convênio com a Defensoria Pública cujo objetivo é "prestar uma melhor assistência jurídica aos presos". A ideia é realizar mutirões para soltar quem pode ganhar a liberdade. Nos últimos anos, iniciativas como essa, inclusive capitaneadas pelo Judiciário, foram realizadas, mas até agora nenhuma produziu efeitos significativos.