Rio de Janeiro, 21 de Dezembro de 2024

Gregório Bezerra e a ditadura

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Segunda, 09 de Dezembro de 2024 às 09:43, por: CdB

Prefeitura do Recife homenageia Gregório Bezerra, em memória à luta do ex-deputado federal. Gregório foi um dos principais defensores da luta pelos direitos trabalhistas.

Por Urariano Mota – de São Paulo

No último dia 5, a prefeitura do Recife homenageou a memória de Gregório Bezerra em dois lugares: diante do seu busto no bairro de Casa Forte e no Memorial da Democracia no Sítio da Trindade. Estive presente iante do busto do guerreiro.

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Gregório Bezerra, líder pernambucano comunista

A esta altura, faz parte da história da ditadura brasileira: no segundo dia do golpe, em 2 de abril de 1964, vestiram-lhe um calção em Gregório Bezerra, ataram-lhe o pescoço com uma corda e depois de o fazerem andar num chão molhado com ácido, para queimar-lhe a planta dos pés e embaçarem a vista, resolveram ‘passear’ com Gregório pelas ruas do bairro de Casa Forte, no Recife. Falou Gregório Bezerra em depoimento:

” – Aí, Villocq comandou a minha saída em procissão, pelo subúrbio de Casa Forte, numa demonstração tipicamente medieval. Eu, na frente, de calção, com o sangue a jorrar de todos os lados, e a malta de militares, com Villocq no comando, a puxar-me pelo pescoço, em três tiras de corda, cada um puxando para um canto. E eu, sem poder me por de pé, tal o estado de abatimento físico. Mas se eu caísse, talvez fosse pior. Então, eu reagia e punha-me a andar. Os pés, nessas alturas, eram verdadeiros feridas, pela ação do ácido.”

‘- Gregório Bezerra vai ser enforcado na Praça de Casa Forte. Venham ver!’, gritava o nazista Villocq, como um possesso. Outras vezes convidava o povo para linchá-lo, sem que fosse atendido. Também aludia ao seu fuzilamento. Os alunos do CPOR negaram-se a participar do massacre. Uma irmã de caridade desmaiou. As mulheres choravam convulsivamente, entre elas a própria esposa do coronel Villocq, o que irritou o SS, o qual gritava, a altos brados: ‘Está com pena deste bandido? Ele vai morrer agora mesmo. Venha assistir também o seu enforcamento na Praça, venha também’.”

Mais de mil pessoas assistiam, atônitas, o massacre, porque mesmo na rua, ainda o espancavam. Parou o trânsito. Passageiros de carros particulares e ônibus foram obrigados a presenciar um espetáculo que o Recife só vira, dantes, no Brasil Colônia, quando foram justiçados os revolucionários de 1817. Uma freira telefonou para o Arcebispo interino pedindo para parar o “espetáculo de circo romano”. O pastor se entendeu, diretamente, com o comandante do IV Exército, general. Justino, o qual aquiesceu. A ordem de parar veio pelo coronel Ibiapina, que ‘argumentou’ com Villocq a seu modo:

– Ainda tenho de interrogá-lo. Depois, façam dele o que quiserem.

População

Villocq, entretanto, saiu derrotado nos seus intentos. Não conseguiu, em momento algum, o apoio da população, mesmo das classes médias, habitantes do bairro. Os oficiais da reserva recusaram-se a participar do massacre. E de centenas de soldados, graduados e oficiais, apenas uns poucos consentiram em se rebaixar ao papel de verdugos SS.

A sua maior derrota, porém, foi quando pretendeu humilhar Gregório e desmoralizá-lo, perante o povo.

“-Diga, bandido: eu sou um traidor da Pátria!”

Ao que Gregório respondeu:

“- E eu sou um patriota, coronel!”

“- Diga, bandido: minha pátria está livre!”

Gregório, outra vez, fulminou-o:

“- Minha pátria será livre, coronel.”

No romance “A mais longa duração da juventude”, a memória de Gregório Bezerra aparece em uma das páginas:

“O professor Lucas olhava para os lados, e como se fosse falar um segredo indigno de ser calado, elevava a voz:

– Eu vou lhe falar uma coisa. Eu vi, eu vi, dona Severina, eu vi Gregório Bezerra ser amarrado feito bicho, arrastado em Casa Forte, espancado com cano de ferro na cabeça. Um homem já velho, de calção, espancado feito um bicho raivoso. Chegou a passar na televisão, no canal 2, dona Severina. Eu vi na rua, e vi na televisão o velhinho arrastado. Que força. Aquilo é um herói. Isso é História.

Fazíamos silêncio, eu e dona Severina, ele próprio um tanto tranquilo, me parecia, quando na verdade Lucas estava emocionado. Dos seus olhos em silêncio eu vi descer lágrimas. E me virei de lado, tão covarde, porque lá em cima estavam Luiz do Carmo e um mimeógrafo. O que eu podia fazer? Se fosse hoje, eu chamaria Lucas a um canto e lhe falava que parasse com aquilo. ‘Lucas, para’ porque eu estava mergulhado até os ossos com os subversivos. Eu lhe diria ‘Lucas, tu és um patriota, mas serena, por favor’. E ele me responderia, creio, ‘Eu sou apenas um jovem como vocês. Não olhe os meus cabelos brancos. Eu sou um jovem igual a vocês. Estão precisando de alguma coisa?’. Mas era ontem em 1970. A gente nem esperava que para nós houvesse um 1971.

Talvez nem chegássemos ao fim daquele 1970, porque as quedas de militantes eram crescentes, e a repressão feroz caçava jovens, humanistas, poetas, trabalhadores, porque todos éramos terroristas. Eu sei, eu falaria o que não falei, porque isto é cômico e trágico, o tempo anterior mata o melhor de nós. E sobrevivemos no reino das possibilidades que não se cumpriram. E ficamos com uma luz, ora em fade out, ora em cor imprevista. Somos personagens no palco, metade passado, outra metade não sabemos onde”.

Em resumo, além do romance: foi à presença de Gregório Bezerra que retornamos em 5/12/2024, diante do seu busto em Casa Forte.

 

Urariano Mota, é Jornalista do Recife. Autor dos romances Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

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