Curiosamente, o primeiro filme a falar do Brasil no Festival de Cannes não foi nenhuma produção brasileira e sim o documentário "Mondovino", do norte-americano Jonathan Nossiter.
Logo em suas primeiras cenas, o diretor mostra uma paisagem litorânea de Pernambuco, em que colhedores apanham cocos. Nossiter lhes pergunta: "Dá para fazer vinho dos cocos?" Ao que os trabalhadores respondem sorrindo.
Após essa primeira falsa impressão de que embarcaria num retrato pouco edificante do Brasil, em seu último segmento a câmera retorna a Pernambuco para entrevistar um casal de vinicultores, Isanette Bianchetti e Inaldo Tedesco, numa região em que o cultivo da uva não tem mais do que 17 anos.
Filho de um jornalista que correu o mundo como correspondente, Nossiter foi garçom e sommelier e aprendeu várias línguas -- inclusive, arranha o português.
O filme é o único documentário da competição, ao lado do politizado "Farenheit 9/11", de Michael Moore, atração da segunda-feira (17).
"Mondovino" percorre diversas regiões do mundo onde se produz vinho, ao mesmo tempo em que revela a candente guerra entre tradição e globalização que se trava dentro dos vinhedos.
Nesse panorama, mais uma vez se desenha uma rivalidade entre a França e os Estados Unidos.
Os franceses são alguns dos defensores dos métodos naturais de produção, que desdenham da assessoria de especialistas como Michel Rolland.
Ele é chamado aos quatro cantos do mundo para aperfeiçoar as qualidades das vinhas, conseguindo assim arrancar notas em revistas ou jornais de experts da imprensa, como o norte-americano Robert Parker. Uma boa avaliação de Parker significa automaticamente que o preço de uma garrafa pode disparar rumo a centenas de dólares.
Há produtores franceses e também italianos, como os Rotschild, os Frescobaldis e os Antinoris, que se renderam à modernização.
Eles não se incomodam com o fato de que hoje há, do outro lado do Atlântico, mais precisamente no Vale de Napa, na Califórnia, produtores como os americanos Robert Mondavi -- com quem eles são capazes de associar-se sem culpa, como fizeram os Frescobaldi, nobre família florentina cuja experiência com o vinho remonta a pelo menos 875 anos.
Mas há quem relute tanto contra a associação com os norte-americanos (como foi o caso da cidade de Aniane no sul da França) quanto contra a manipulação das qualidades das uvas para agradar a experts como Parker, bem como à uniformização do gosto mundial dos consumidores.
O herói desta causa é, sem dúvida, Hubert de Montille, dono de 8 hectares na região da Borgonha, vinicultor há mais de 50 anos e inimigo mortal do que ele chama de "pensamento monolítico" -- seja na política, seja na degustação de vinhos.
Nessa luta entre o Velho e o Novo Continente, também a América do Sul está entrando no jogo -- e também aí há métodos divergentes.
Se a tradicional família Etchard, da Argentina, não tem pudores de recorrer ao especialista Rolland para aprimorar segundo o gosto mundial a qualidade de seus vinhos, pequenos produtores indígenas, como Antonio Cabezas, sobrevivem pobremente numa propriedade de apenas 1 hectare, produzindo no entanto um vinho branco Torrentes com características únicas.
O Brasil entra nessa história apenas como um novo horizonte que se está abrindo, no caso, numa região de plantio recentíssimo, até em termos brasileiros. Não se sabe porquê, o diretor deixou de lado a tradicional região produtora no sul do Brasil.
O país, em todo caso, começa a entrar ativamente em cena neste domingo, com a abertura do "Tributo ao Cinema Brasileiro: 40 Anos de Cinema Novo", com a exibição de "Bye Bye Brasil", com a presença do diretor Cacá Diegues e do ministro da cultura, Gilberto Gil.
A exibição de gala dará início à programação especial, que trará também filmes de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Anselmo Duarte e Joaquim Pedro de Andrade e se estenderá até dia 21.
Na quarta-feira (19), é a vez da exibição, na competição ofici