Embora ainda faltem estudos mais aprofundados sobre as razões do protagonismo feminino na luta contra o PL 1904/2024, ficou claro que a mudança de atitude aconteceu quando as mulheres se deram conta que dois valores femininos foram duramente atingidos pelo projeto de lei: a violentação da maternidade, na medida que crianças estupradas poderiam ser punidas; e o sentimento de injustiça e discriminação com a desigualdade de punições entre vítima e criminoso.
As reações da opinião pública feminina surpreenderam porque o debate sobre o projeto, apresentado pelo deputado evangélico Sóstenes Cavalcante (PL- RJ), começou morno e burocrático na primeira semana de junho, quando o Conselho Federal de Medicina divulgou uma resolução proibindo os médicos de promoverem a interrupção da gravidez após cinco meses e meio de gestação. O posicionamento do CFM passou para o terreno jurídico quando o ministro do STF, Alexandre Morais, ordenou a suspensão da vigência da instrução baixada pelo CFM.
Logo em seguida, parlamentares ultraconservadores apresentaram o texto do PL do aborto na Câmara de Deputados, aproveitando a celeuma provocada pela decisão de Morais para “testar o presidente Lula”, segundo declarações do deputado Sóstenes. Ao mesmo tempo 31 outros parlamentares, também signatários do PL, procuraram usar a polêmica para aumentar o poder da chamada ‘Bancada de Bíblia’ e radicalizar o confronto entre governo e oposição em torno da chamada Pauta de Costumes. (1)
O oportunismo político ficou escancarado quando o presidente da Câmara de Deputados, Arthur Lira (PP-AL), numa manobra regimental, promoveu a urgência na votação do Projeto de Lei que ficou também conhecido como PL dos Estupradores. Ficou então claro que o PL procurava atender os interesses político/eleitorais de deputados federais e senadores da extrema direita. As mulheres não passavam de mero pretexto para promover um eventual escorregão político do presidente Lula e criar a imagem de que os antiabortistas estavam empenhados na preservação da vida humana.
O papel chave da comunicação
A consciência de que estavam sendo usadas como massa de manobra para políticos mexeu com a autoestima e os valores femininos criando um ambiente favorável a que se multiplicassem manifestações, protestos e pronunciamentos que pegaram desprevenidos os apoiadores do PL 1904/2024. O movimento contra o PL do deputado Sóstenes Cavalcanti ganhou tal força entre as mulheres que até mesmo históricos opositores do aborto como o ex-presidente Jair Bolsonaro e sua mulher, o histriônico pastor Silas Malafaia e a ex-ministra Damares Alves optaram por um discreto silêncio para evitar desgaste político.
Ficou claro o papel fundamental das redes sociais na mobilização feminina mostrando que a formação da opinião pública não passa mais apenas pela mídia convencional. O fato de protestos terem ocorrido em pouquíssimo tempo indica que houve uma intensa comunicação entre grupos de mulheres através de um boca a boca virtual nas plataformas digitais.
A imprensa foi apanhada no contrapé porque sua cobertura do debate sobre o procedimento médico conhecido clinicamente como assistolia fetal, morte provocada do feto, focou mais nas questões políticas e ideológicas do que no dilema das mulheres estupradas. A norma vigente há décadas de priorizar a agenda do establishment na cobertura jornalística cria condições para que a imprensa deixe de prestar atenção a fenômenos novos na comunicação entre as pessoas, como aconteceu no caso do inesperado protagonismo feminino, num tema que até agora fazia parte do complicado jogo político-ideológico em torno da pauta de costumes.
O episódio mostra que a pauta de costumes pode funcionar como uma faca de dois gumes. É inegável que há no país uma maioria considerável de brasileiros que são contra o aborto, mas quando a questão é humanizada e personalizada a rejeição ganha nuances e percepções diferenciadas.
A votação de um PL que interessava à maioria conservadora no Congresso Nacional acabou sendo adiada por conta da combinação entre duas frases que personalizaram as consequências do projeto e a viralização, via redes sociais, do sentimento que contagiou um grande número de mulheres brasileiras. (Publicado no Observatório da Imprensa).
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.