A batalha ideológica entre ultraconservadores e liberais democráticos contaminou os altos escalões de algumas das mais importantes organizações da imprensa mundial, ameaçando seriamente a imagem de isenção que milhões de pessoas ainda têm em relação ao noticiário jornalístico.
Por Carlos Castilho, publicado no Observatório da Imprensa.

A mais recente vítima da polarização político/ideológica contemporânea é a rede britânica de televisão BBC, considerada um ícone da imparcialidade noticiosa e que sofreu um sério baque em sua credibilidade depois que dois importantes executivos renunciaram para evitar a ameaça de um processo judicial de um bilhão de dólares feita pelo presidente norte-americano Donald Trump.
O diretor-geral Tim Davie e a principal executiva da área jornalística da emissora, Deborah Turness, caíram em desgraça em consequência de uma edição mal-feita de um discurso de Trump, dando a entender aos telespectadores do programa Panorama que o presidente conclamou seguidores a invadir o Capitolio no dia 6 de janeiro de 2021. O caso foi usado pelo jornal direitista Telegraph, com apoio de políticos britânicos ultra conservadores, para ressuscitar acusações de que o noticiário da BBC é ideologicamente enviesado.
Cerco à grande imprensa
Antes da BBC, outra grande rede de televisão foi obrigada a recuar diante de Donald Trump, também por conta de uma polêmica em torno da edição de um programa político. A rede CBS, uma das três maiores redes de televisão dos Estados Unidos, foi acusada por Donald Trump de ter adulterado um pronunciamento da então candidata democrata à Casa Branca, Kamala Harris, para prejudicar seu oponente republicano.
O caso é paradigmático na atual conjuntura da imprensa mundial onde grandes veículos de imprensa, em quase todo mundo, estão sob fogo cerrado da extrema direita, como parte da guerra pelo controle da agenda pública de debates. É um fenômeno complexo, porque envolve manipulação de narrativas e contextos, sem que o público consiga entender claramente quem tem razão e o que está em jogo.
Jornais como o The New York Times (norte-americano), Le Monde (francês), The Guardian (inglês) e El País (espanhol) bem como emissoras de TV como as redes norte-americanas ABC e PBS já estiveram na mira dos ultraconservadores, que levaram a disputa ideológica também para o terreno empresarial, como aconteceu com a compra da rede CBS pelo conglomerado digital Oracle, alinhado ao trumpismo. A CBS tinha uma longa tradição de imparcialidade jornalística, construída principalmente através de apresentadores como Walter Cronkite e Ed Murrow.
O caso da BBC ganhou importância mundial porque a emissora é vista como uma das mais respeitáveis instituições britânicas, com uma tradição de credibilidade construída ao longo de seus 103 anos de existência. Ela é inclusive chamada de Beeb ou Auntie (querida tia) por muitos ingleses que religiosamente assistem todos os dias seus noticiários. O caso da adulteração do discurso de Trump no programa Panorama foi o pretexto para que os ultraconservadores ingleses também passassem a acusar a emissora de favorecer o Hamas na guerra em Gaza e de simpatias com homossexuais.
Os executivos que renunciaram a seus cargos demoraram em reconhecer os erros editoriais, dando tempo para que seus desafetos criassem um ambiente de crise no momento em que a BBC enfrenta uma difícil batalha político/parlamentar na renovação do financiamento estatal da emissora.
A politização de erros editorais
A ofensiva de partidos e movimentos ultraconservadores contra grandes veículos de comunicação se insere no contexto da polarização ideológica e política em curso na maior parte do planeta. A grande imprensa mundial tem laços históricos com a ideologia liberal democrática, baseada no livre mercado e no modelo eleitoral. Esta forma de ver o mundo enfrenta agora uma crescente oposição de ideias de extrema direita, cujo objetivo é desconstruir o sistema liberal democrático e implantar o autoritarismo populista no maior número possível de países.
O severo patrulhamento ideológico e político sobre veículos tradicionais da imprensa liberal democrática visa sobretudo identificar erros editoriais que, noutras circunstâncias, não chegariam a gerar crises como as que afetaram a BBC e a CBS. Com isto, a atividade jornalística tornou-se ainda mais complexa porque, além de um cuidado extremo na seleção, checagem e edição de notícias, os profissionais precisam agora se preocupar com a forma pela qual dados, fatos e eventos são publicados, ou seja, com as narrativas embutidas em textos e imagens.
Qualquer erro ou descuido na edição de imagens, na reprodução de declarações, na interpretação de números ou descrição de situações corre o risco de deflagrar batalhas políticas de consequências imprevisíveis. O jornalismo está sendo obrigado a incorporar a leitura política da realidade ao conjunto de ferramentas profissionais necessárias para dar a leitores, ouvintes e telespectadores informações o mais próximo possível da verdade. Por Carlos Castilho. (Publicado originalmente no Observatório da Imprensa).