Rio de Janeiro, 02 de Junho de 2025

Ao Chico, com afeto

"Nunca escutei Com açúcar e com afeto como apologia da mulher subordinada, antes percebendo nas palavras de Chico o teor irônico de sua arte de compor a caricatura de tantas Amélias já cantadas desde Ataulfo Alves e Mário Lago".

Sábado, 29 de Janeiro de 2022 às 11:58, por: CdB

"Nunca escutei Com açúcar e com afeto como apologia da mulher subordinada, antes percebendo nas palavras de Chico o teor irônico de sua arte de compor a caricatura de tantas Amélias já cantadas desde Ataulfo Alves e Mário Lago".

Por Irlys Alencar F. Barreira - de Fortaleza
Leio com desconforto a notícia de que Chico Buarque deixaria de cantar a música “Com açúcar e com afeto”, atendendo aos apelos de críticas feministas sobre o teor machista da música.
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"Sempre entendi as músicas do Chico como o reverso do identitarismo incapaz de pensar relacionalmente nesse tempo em que a dialética saiu da moda", escreveu Irlys Barreira
O que sempre me encantou em Chico Buarque foi sua capacidade de expressar os muitos lados do ”feminino”, abarcando um universo amplo e diverso de comportamentos e percepções de mulheres. Dentre inúmeros outros temas, Chico cantou as Mulheres de Atenas, Morena de Angola, mulheres que só dizem sim. Cantou a beleza, a trapaça, o amor em suas nuances e contradições. Em artigo denominado 'Sinfonias do cotidiano brasileiro' baseado em análise das músicas de Chico Buarque ressaltei a capacidade do compositor de representar em suas composições as ambivalências de um Brasil desigual, expondo, com sua criação lírica uma multiplicidade de visões de mundo e comportamentos. Aprendemos com a sociologia que reconhecer a diversidade de situações ao invés de ignora-las é o primeiro passo para uma elaboração da crítica social.

Identitarismo

Também conhecemos com a psicanálise que, para além do bem e do mal, somos habitados por mundos tácitos e contraditórios. E quantas mulheres já se reconheceram na condição de ter que fazer “o doce predileto”, a exemplo do texto de Verônica Oliveira que se viu na música como parte de um coletivo que não supunha existir? Eu particularmente nunca escutei Com açúcar e com afeto como apologia da mulher subordinada, antes percebendo nas palavras de Chico o teor irônico de sua arte de compor a caricatura de tantas Amélias já cantadas desde Ataulfo Alves e Mário Lago. Por acaso poderíamos também pensar que Chico dignificou o malandro ou fez apologia da marginalidade infantil na música Meu Guri, ou glorificou a prostituição com a música Folhetim? Sempre entendi as músicas do Chico como o reverso do identitarismo incapaz de pensar relacionalmente nesse tempo em que a dialética saiu da moda. Espero que depois de tantas críticas circulando por aí, nosso querido compositor brasileiro possa continuar sua roda viva de canções expressivas de uma sociedade rica de contradições e criatividade, “catando toda a poesia que se entorna no chão” da vida social.  Chico, não desatine. Irlys Alencar F. Barreira é professora Titular de Sociologia do PPGS da UFC, pesquisadora 1 B do CNPq e líder do Grupo de Pesquisa Lideranças, representações e práticas políticas do Diretório de Pesquisa do CNPq.
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