O controle das imagens captadas por câmeras ou celulares com o objetivo de proteger os policiais colocou a imprensa francesa contra o presidente Emmanuel Macron, provocou manifestações em toda França e esse clima de tensão poderá continuar, mesmo com a decisão da maioria parlamentar governista de refazer o texto de um artigo da nova Lei de Segurança Global. A modernização da imprensa com a utilização de câmeras leves e móveis e mesmo imagens feitas por celulares não profissionais permite a rápida transmissão pela televisão e redes sociais de imagens nem sempre positivas das intervenções policiais. Uma lei proibindo e punindo a utilização dessas imagens está sendo considerada como censura e atentado à liberdade de imprensa, direito considerado sagrado pelos franceses. Embora o Ministro do Interior, encarregado da Polícia francesa, acabe de assegurar — depois de uma reunião de urgência com o presidente Macron, primeiro-ministro Jean Castex e líderes das bancadas parlamentares — uma total revisão do texto provocador de tantas reações, a insatisfação continua. Jérôme Fenoglio, diretor do Le Monde, jornal que resume em si a luta da imprensa francesa contra a censura, afirmou num editorial querer a supressão pura e simples do texto, por ser inaceitável e injustificável. O artigo 24, causador da crise No mundo atual da força das imagens, o parlamento francês acaba de aprovar um artigo na chamada Lei de Segurança Global, rejeitado por toda mídia francesa por ser considerado como uma restrição inaceitável ao exercício da liberdade de imprensa. Trata-se do artigo número 24, pelo qual será punido com pesada multa e mesmo prisão quem divulgar foto ou filme, e isso quer dizer nos jornais, na televisão ou nas redes sociais de cena com policiais. O texto pretende proteger a identidade dos policiais, mas na verdade, protege-os, caso usem de violência, no momento de reprimirem manifestações ou efetuarem prisão de suspeitos de tentarem provocar ou terem provocado infrações ou atentados. A França, cuja história chega mesmo a ser gloriosa, por estar sempre ligada à defesa da liberdade, e isso vem de longe, de 1789 com a Revolução Francesa, estaria prestes a se tornar pioneira no controle dos meios de informação, com o risco de se equiparar aos países ditatoriais. A frase está no condicional e provavelmente não se concretizará, dadas as reações já provocadas em muitas cidades, destacando-se a primeira grande manifestação popular realizada no sábado em Paris, que degenerou em ataques violentos a policiais e depredações. Como o presidente Emmanuel Macron optou por uma simples modificação do texto original do artigo 24, terá provavelmente comprado uma briga capaz de desestabilizar seu governo. Essa proibição ou controle da imagem, prevista no artigo 24, é sutil e maldosa ao mesmo tempo, pois a imprensa sem fotos ou imagens, apenas textos ou descrições sonoras, de intervenções policiais violentas, como as ocorridas e veiculadas nestes dias pela televisão, ficaria sem as provas necessárias para fundamentar suas denúncias. Os textos descritivos impressos ou narrativas sonoras na rádio ou televisão não seriam tão convincentes e nem teriam o impacto das últimas cenas de violência divulgadas nesta última semana. E, não havendo prova visual, os jornalistas responsáveis pela divulgação de “supostas” violências poderiam ser processados. A pretexto de proteger os policiais, o objetivo do artigo 24 é outro, visa tornar impunes as violências policiais. Pelo texto atual do artigo 24, será punido o fotógrafo, o cinegrafista ou o simples cidadão que captar imagens de um policial ou militar e será também punido quem publicar ou difundir pelos meios televisivos essas imagens. A pena é severa e traz nela um efeito dissuasivo: 45 mil euros de multa, cerca de 250 mil reais e um ano de prisão. A liberdade de imprensa na França O primeiro reconhecimento da liberdade de imprensa na França, veio com o artigo 11 da Declaração dos direitos do homem e do cidadão, logo depois da Revolução Francesa: “todo cidadão pode falar, escrever e imprimir livremente, mas terá de responder pelo abuso dessa liberdade nos casos determinados pela lei”. Mais tarde, em 1881, uma lei francesa mais ampla tratou da liberdade de expressão e de imprensa. Sem esquecer que a liberdade de imprensa foi consagrada na Declaração universal dos direitos humanos, de 1948, e na Convenção europeia dos direitos humanos, de 1950. A lei de 1881, referência sobre a liberdade de imprensa na França, foi se adaptando com o tempo a certas regras ligadas à proteção dos menores, repressão da injúria, difamação, proteção da pessoa e de sua vida privada. Já em 1972, dentro da luta contra o racismo, se proibiu e puniu a discriminação, injúria ou difamação por questão de etnia, nação ou religião. Outra lei, em 1990, proibiu a negação dos crimes contra a humanidade cometidos pelo regime nazista. Em 1998, se considerou que todas publicações na Internet estavam enquadradas dentro das leis relacionadas com a imprensa. Assim, em 2018, foram criadas leis contra as notícias falsas (fake news), bem como a regulação da concentração dos órgãos de imprensa a fim de evitar seu controle por grupos ou capitais. O diretor do jornal Le Monde, Jérôme Fenoglio, é visceralmente contrário ao artigo 24 da Lei de segurança global que, de maneira imprópria, se tornaria uma nova restrição dentro da primeira lei reguladora da imprensa de 1881. Para ele, a pretexto de se proteger a identidade dos policiais, criou-se uma lei corporativista, que, na verdade, cria a suspeita de que se quer impedir a divulgação e identificação dos policiais envolvidos em atos de violência. Existem outras leis que protegem os policiais contra o terrorismo, contra os apelos à violência e ao ódio. Basta serem bem aplicadas. Jérôme Fenoglio é contra outros artigos da Lei de Segurança Global, como o uso de drones para vigiar a população. A defesa do anonimato dos policiais franceses foi posta em dúvida pelas próprias televisões francesas ao mostrarem policiais ingleses e alemães com suas identificações bem visíveis nos próprios uniformes. *** Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
Censura e controle da imprensa, na França
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Quarta, 02 de Dezembro de 2020 às 17:05, por: CdB