O Direto da Redação, um fórum de debates, publica, a partir de hoje, uma sequência alternada de quatro opiniões de comentaristas do blog Náufrago da Utopia sobre as próximas eleições. Opiniões diferenciadas e mesmo opostas. O editor do blog, Celso Lungaretti, fez uma síntese dessa inciativa: é a oportunidade de transmitir e defender suas visões numa tribuna comum, tanto que tem como principais bandeiras a justiça social, a liberdade, os direitos humanos e o pensamento crítico. Somos contra o monolitismo, o pensamento único e a aberração de encarar como inimigos aqueles que são apenas nossos adversários circunstanciais, mas ocuparão conosco a mesma trincheira, como bons aliados, quando o enfrentamento do inimigo comum o exigir. Então, ao expormos aqui os posicionamentos específicos de nós quatro sobre a eleição presidencial de outubro, estamos dando um exemplo de como se pode trabalhar em conjunto e discutir civilizadamente com quem não reza de cabo a rabo pela mesma cartilha, mas, mesmo assim, continua sendo nosso companheiro de lutas e amigo no dia a dia.
(1) Celso Lungaretti
Recuso-me a refletir sobre a eleição presidencial brasileira de 2022 com as limitações impostas pelo poder econômico, que, utilizando-se dos meios de comunicação de massa a seu serviço, pauta as discussões, deixando de lado as crises globais do capitalismo e do clima, que são componentes essenciais de quaisquer tentativas sérias de perscrutarmos o nosso futuro e decidirmos quais as linhas de ação que mais nos convêm.
Muito alarmismo se propaga a respeito de uma (im)possível repetição das escaladas nazista e fascista na década de 1930, omitindo o aspecto principal: ambas apostavam numa estabilização do capitalismo que não ocorreu e, por isto, foram derrotadas (causando enormes devastação e morticínio, é verdade, mas sendo exemplarmente varridas para a lixeira da História).
O verdadeiro calcanhar de Aquiles de tais ditaduras era o de que seus Estados todo-poderosos engessavam a economia capitalista, mas o desenvolvimento das forças produtivas apontava noutra direção, com a infraestrutura básica já implantada, a fase da industrialização pesada concluída e a sociedade de consumo querendo chegar.
Vieram depois, nos anos 80, os avanços da informática, biotecnologia, novos materiais, novos processos, etc. A globalização dos mercados se tornou inevitável e quem pretendeu resistir a ele (acreditando, p. ex., na quimera do socialismo num só país) acabou ficando miseravelmente para trás e sendo obrigado a efetuar alterações de rumo como as da Rússia e da China.
Confirmou-se o que Marx previra: os países cujas forças produtivas estão mais avançadas é que determinam o rumo a ser seguido pelas nações retardatárias.
O que mudou desde então? O fato de que já não existe mais para onde o capitalismo avançar, pois seu dinamismo está sendo travado pela monstruosa desigualdade que gerou:
— 45,8% da riqueza global são apropriados por 1,1% da população mundial (os que superam US$ 1 milhão em posses);
— 39,1% ficam em mãos dos 11,1% que possuem entre US$ 100 mil e US$ 1 milhão;
— 13,7% vão para os 32,8%% cujas posses oscilam entre US$ 10 mil e US$ 100 mil;
— míseros 1,4% são o que sobra para 55% dos seres humanos deste planeta (os coitadezas na faixa de até US$ 10 mil)!
Com isto, estabeleceu-se um monumental desequilíbrio entre oferta e procura, de vez que não há consumidores com poder aquisitivo suficiente para adquirir substancial parcela do que se poderia estar produzindo, o que causa uma canibalesca guerra de mercado pela conquista dos que ainda têm como pagar por algo mais além dos itens indispensáveis.
Já se chegara a impasse semelhante depois da 1ª Guerra Mundial, daí resultando a Grande Depressão, iniciada em 1929 e que se prolongou pela década seguinte adentro. Dela só se saiu quando a produção represada se voltou para itens que não necessitavam de consumidores propriamente ditos: os destinados à carnificina da 2ª Guerra.
Depois do que acreditamos tenha sido o último grande avanço das forças produtivas sob o capitalismo, o da década de 1980, o regime da exploração do homem pelo homem passou a sobreviver mediante subterfúgios como a concessão indiscriminada de crédito, a desvinculação da emissão de moedas de qualquer tipo de lastro e outras artificialidades.
Conclusão: o mundo marcha para uma convulsão sem precedentes, com a mais do que provável simultaneidade e sinergia entre a crise terminal do capitalismo e os efeitos dramáticos das alterações climáticas, mesmo que já exista uma possibilidade de evitar que estas últimas determinem o fim da espécie humana .
O Brasil, satélite desde sempre das nações centrais, vem alternando governos autoritários como os das ditaduras de 1930/1945 e 1964/1985, tentativas de golpe de direita como as de 1954 e 1961, e governos civis subjugados ao poder econômico como quase todos os restantes (tênues tentativas de remar contra a corrente, como a de Vargas nos anos 50 e a de Goulart em 1963/64 foram extirpadas pela via do golpismo).
Jair Bolsonaro acrescentou ingredientes de irracionalidade política e loucura pessoal à recaída capitalista em sua etapa mais selvagem, daí a decisão já tomada pela elite econômica (não confundir com os vira-latas do capitalismo, como esses predadores da Amazônia que o apoiam) de descartá-lo.
Nem as Forças Armadas o salvarão, nem os rebanhos evangélicos e ultradireitistas têm autonomia de ação para confrontar o poder econômico. O aperto já foi longe demais e acabará havendo uma explosão social se a miséria continuar aumentando.
Então, a fase da turbulência e bestialidades está com os dias contados e, como sempre, será sucedida por um ligeiro alívio, com o reformista Lula na presidência. Só que ele e o PT não têm a mínima ideia de como tirar o Brasil do buraco econômico e encaminham-se para repetir tudo que não deu certo desde a última redemocratização.
Foi quando a esquerda brasileira começou a dar uma acentuada guinada para a direita, desistindo de mirar a superação do capitalismo e conformando-se com obter, por via eleitoral, o direito de gerenciar o capitalismo por delegação da burguesia, com limite de ação demarcado pelas concessões às quais Lula se obrigou ao assinar a famigerada carta para apaziguar ricaços de 2002.
Hoje, com Bolsonaro em queda livre , o que se delineia é seu abandono à própria sorte entre julho e agosto, quando os rapinantes do centrão se darão por satisfeitos com o que até lá tiverem saqueado dos cofres públicos e vão pular para o barco do novo presidente, provavelmente Lula.
Nem golpe, nem reeleição: o futuro de Bolsonaro é uma possível barganha para preservar a impunidade dele e da sua gang, ou a prisão, ou o hospício. Não passa de uma carta fora do baralho.
Daí também a necessidade de reconstruirmos a esquerda combativa, pois, não nos iludamos, os desnecessários horrores bolsonaristas não sobreviverão ao fim do seu desgoverno, mas a dominação capitalista, com uma maquilagem que já não conseguirá disfarçar sua carantonha medonha, vai persistir.
E o primeiro passo para o resgate da identidade da esquerda é não embarcar no alarmismo petista, que pretende impingir a lorota de que o voto útil no 1º turno seja a única forma de impedir o que a História já impediu: o plágio bolsonarista da invasão trumpiana do Capitólio, mero blefe de quem queimou seu último cartucho com a flopada acachapante da micareta golpista do último 7 de setembro.
Com o voto consciente no 1º turno começaremos a forjar uma esquerda renovada, para defender os explorados durante o próximo governo capitalista e resistir ao próximo golpe ultradireitista, depois do próximo fracasso anunciado de mais um presidente reformista.
Precisamos interromper a alternância entre governos da direita brucutu e da esquerda domesticada, caso contrário ficaremos patinando sem sair do lugar até o fim dos tempos. Por Celso Lungaretti (Publicado originalmente com a iconografia do blog Náufrago da Utopia)
Direto da Redação é um fórum de debates publicado no Correio do Brasil pelo jornalista Rui Martins.