Biografia escrita por Wellington de Melo resgata a trajetória do poeta pernambucano Miró da Muribeca, entre poesia, luta social, desafios pessoais e legado cultural.
Por Urariano Mota – de São Paulo
A biografia Miró da Muribeca – Estou quase pronto, escrita por Wellington de Melo, teve lançamento na última sexta-feira, no Grupo Clariô de Teatro, na Vila Santa Luzia, Taboão da Serra – São Paulo, com participação do escritor Marcelino Freire. No sábado o evento aconteceu na Livraria Simples, Rua Rocha, 259, Bela Vista, São Paulo, com participação de Milton Aguiar. E na próxima quinta-feira às 19h no Recife, no Bar do Teatro Mamulengo, Recife Antigo.

Devo dizer que Miró da Muribeca havia sido, ou melhor, ele é homenageado em nosso Dicionário Amoroso do Recife. Em 2014 publiquei sobre o poeta no livro:
João Flávio foi transformado em Miró pelos amigos, porque lembrava ao jogar o bom Mirobaldo, um craque da pelota do Santa Cruz Futebol Clube. No tempo em que o maior talento de João era o futebol, os seus amigos o apelidaram de Miró, forma reduzida de Mirobaldo, que se pronuncia com a vogal “o” aberta da fala nordestina. Depois, na fase em que assumiu o jogo mais raro e difícil da poesia, achou por bem continuar assim, Miró.
Como neste lindo poema:
“Acho que foi a primeira vez que conheci a dor
Um domingo de 1971
Naquele tempo o domingo era o dia mais feliz,
Minha mãe fazia um macarrão com carne de
lata e Q-suco
Ficávamos brincando de mostrar a língua vermelha
Pra provar que éramos felizes …
Norma era tão linda com seus cabelos negros,
Que me deu um branco aos 11 anos
Quando me pediu um biscoito maizena e um
gole de fratele vita …
Domingo era o dia mais feliz
Antes de Norma beijar um outro na boca.”
Aquelas coisas mínimas, constrangedoras, que nem às paredes confessamos, ele, como um novo louco, arrebenta de si. Mais do que escrever, por vezes transcreve. Com uma sensibilidade que observa o inobservável. Este poema a seguir não precisa da performance do poeta no palco. Basta a sensibilidade do leitor.
“Deus, Tu que agora carregas um homem,
Puxando pelas rédeas o seu cavalo e uns
sacos de cimento
De cada lado um sol insuportável …
Deus, Choves agora no meu coração
Para que eu não pense em comprar um
guarda-chuvas de balas
E fazer justiça com as próprias mãos.”
Na biografia bem pesquisada por Wellington de Melo, entre depoimentos sobre as quedas do poeta no alcoolismo, aparece um Miró que fala um retrato da sociedade de classes por toda a sua vida. Na altura dos seus 22 anos de idade, isso se deu, conforme publicado no livro:
“– Quando eu publiquei um poema no jornal dos funcionários da Sudene, saiu meu nome e a sigla de onde eu trabalhava, DSG, Departamento de Serviços Gerais. O filho da puta do meu chefe, seu Fernando, chegou na fila para bater cartão e perguntou: ‘Quem é João Flávio?’. Eu disse: ‘Sou eu’. ‘Sente aqui. Olhe, a gente não quer ninguém daqui metido com o pessoal lá de cima. Vocês são serventes’. ‘Mas eu sou poeta, sou escritor’, eu disse. Levei três dias de suspensão. Falei para Wilson (poeta Wilson Araújo de Sousa), e ele falou com Maria do Carmo (poeta Maria do Carmo Barreto Campello de Mello), que me resgatou e me colocou um mês para trabalhar na sala dela, fazendo nada.
O episódio bate com o relato que eu ouvira de Maria do Carmo, que afirmou tê-lo colocado sob suas asas para que ninguém o perseguisse. No entanto, em conversa com o filho da poeta, o médico Paulo Barreto Campello, descobri que a perseguição vinha de antes da publicação:
– Não queriam publicar o poema de Miró no jornal, porque ele era faxineiro. Minha mãe então falou com o superintendente, dizendo que, se não publicassem, ela iria à imprensa”.
Há um outro momento da biografia que lembra os dias de Lima Barreto no hospício. Houve uma vez em que os psiquiatras receberam o imenso Lima Barreto, e escreveram incrédulos e zombeteiros no seu prontuário: “diz-se escritor”. É incrível e sintomático da sociedade brasileira, que de modo semelhante isso ocorreu com Miró. Está no livro:
“Quando Wilson falou pela primeira vez com os médicos do Alfa, um deles relatou que estavam pensando em chamar um acompanhamento psiquiátrico.
‘Ele está alegando que é poeta, mostrando um comportamento estranho, recitando uns poemas’, informou a médica. ‘Você sabia que ele é um dos grandes poetas de Pernambuco?”, perguntou Wilson. ‘É?’, perguntou surpresa a médica”.
Não fosse a rede de apoio dos amigos e admiradores, o poeta Miró teria morrido muito antes dos quase 62 anos de idade. Ele, à semelhança do outro gênio Noel Rosa, teria vivido menos que um sopro. Certa vez, ele chegou a falar:
– Você sabia que tem uma bolsa de apostas no Recife para saber quando eu vou morrer?
Não acertaram o dia. Mas em 31 de julho de 2022 o poeta faleceu. No texto de Wellington de Melo, lemos:
“Adroaldo, sempre uma fortaleza de cuidado, um porto seguro emocional para Miró, também fez um relato tocante:
– No meu plantão ele falou que estava morrendo. Saí do quarto para chorar. Não queria fazer isso na frente dele”.
O seu encanto e feitiço vinham e vêm da união de Poesia e Verdade, como falava Goethe. Para o Brasil que ainda não o conhece, Miró aparece aqui em um dos seus vídeos:
Miró da Muribeca não precisa mais dos qualificativos “preto e pobre”, que na sociedade de classes e racista são desqualificativos. Guardadas as diferenças, seria qualificar de maneira semelhante Machado de Assis e Cruz e Sousa. Eles são grandes escritores, ponto. Portanto, Miró da Muribeca é muito bom poeta, ponto. E ganhou a sua primeira biografia.
Urariano Mota, é Jornalista do Recife. Autor dos romances Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude.
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