No velho fogão à lenha, só cinza no borralho e panelas enfumaçadas sem nada dentro. Essa é a imagem, comum em muitas casas no Vale do Jequitinhonha, que deixa as mães de família em tempo de perder o juízo. "Agora estou mais calma, mas já corri doida nessas horas, me largava a pedir cachaça nas vendas para esquecer tudo", conta Benvinda Severina, cujo nome completo não tem mesmo sobrenome, mas já diz tudo.
Tem "uns 30" anos, diz, sem a menor vontade ou paciência para exatidões. Filhos, soma 14, mas perdeu três, ainda "anjinhos". Ri, pois estão nos céus. Difícil é aqui embaixo, vida semi-árida, município de Carbonita, sertão das Minas Gerais. "E nunca dei nenhum (filho) a ninguém, mesmo vivendo sem marido", orgulha-se. Dar uma criatura para uma pessoa "com condições" é ato banal na região.
Benvinda Severina sustenta os meninos com a bolsa-escola de uma filha e a ajuda de vizinhos e do "véi", como chama o aposentado do distrito de Abadia, na zona rural, que passa o final de semana com ela. "Hoje a fornalha não tem um caroço de feijão, mas hei de arrumar", mostra o fogão. O relógio da igreja bate as pancadas do meio-dia.
Há tempos atrás, relata, já estaria bêbada pelas calçadas. "O que comer ninguém dá assim fácil, mas cachaça a gente arruma correndo", lembra. Diz que está com o juízo no lugar. Beber não adiantava nada. "Na volta pra casa, era um inferno do mesmo jeito, coisa do belzebu". Se benze, bate na madeira três vezes.
Vida fácil nunca teve mesmo. Antes de morar na cidade – não sabe há quanto tempo - viveu debaixo de árvores ou lona, dormindo com crianças em cima de duas esteiras de palha de banana. Depois que as coisas melhoram, fez uma promessa: nunca mais reclamar da vida.
Em pouco mais de uma hora nos arredores da casa de Benvinda Severina, a reportagem colheu várias narrativas sobre trajetórias semelhantes. Embora os pais se preocupem, a cabeça materna é que endoida diante do fogo morto sob as panelas. "Muitos cabras safados dão no pé, não agüentam a situação, vão embora e deixam tudo nas nossas costas", diz ela.
Xico Sá é jornalista e participa do Projeto "Nova Geografia da Fome", junto com o fotógrafo U.Dettmar