Talvez se possa dizer ter sido Deus quem elegeu Jair Bolsonaro presidente. Usando-se o algoritmo para se poder entender a conjugação de uma coisa tão temporal, restrita e finita como uma eleição, mesmo sendo presidencial, com um personagem divino atemporal, universal e infinito, o resultado pode ser surpreendente.
Das complicadas equações envolvidas numa eleição, o mais importante é o resultado final e suas determinantes. Ora, sabemos ter sido da ordem de 10% a vitória de Bolsonaro sobre Fernando Haddad e, como disse Jacques Wagner na época, Ciro Gomes poderia ter ganhado se fosse o candidato único da esquerda.
Talvez, porque havia outro fator, até hoje pouco explorado pelos analistas, na vitória bolsonariana. O fator divino. Não que Deus tivesse descido dos céus para influir ou fraudar o resultado das eleições, mesmo porque até hoje, que eu saiba, ninguém provou sua existência.
Mas foi o uso abusivo e despudorado da influência da segunda pessoa da Santíssima Trindade, quero dizer de Jesus Cristo, na campanha eleitoral. Principalmente pelos seguidores do Evangelho, pregado há dois mil anos pelo filho de Deus. Refiro-me aos chamados “evangélicos”, praticantes de uma seita muito parecida com as denominações protestantes, porém delas se diferenciando por adotar uma bem livre interpretação das Sagradas Escrituras como é também conhecida a Bíblia. Seus pregadores também não têm a formação teológica dos pastores ou reverendos protestantes presbiterianos, metodistas ou batistas.
Inspiram-se diretamente do livro bíblico Atos dos Apóstolos, onde se diz que o Espírito Santo desceu como línguas de fogo sobre os seguidores do Cristo crucificado, fazendo-os falar línguas estrangeiras, imagino o latim dos ocupantes romanos na Palestina. Embora no Brasil só se fale o português, é comum nos cultos os fiéis também falarem idiomas estrangeiros ou estranhos e deixarem recados para os fiéis, mas em português, respondendo individualmente às expectativas de cada um nessas manifestações coletivas.
Originárias dos Estados Unidos, as seitas evangélicas tiveram um grande sucesso na América Central e têm atualmente uma grande penetração no Brasil. Ao contrário dos movimentos sociais interessados em mobilizar o povo em busca de justiça social, os pastores evangélicos enfatizam o reino dos céus que, garantem, mas sem recibo, estar destinado aos “crentes”. Cansados da luta terrena da vida, sem grandes chances de ascenção social e um tanto ingênuos os fiéis embarcam nessas promessas de uma vida melhor, mas só depois da morte.
Com isso, apagam o estopim da luta social. Para historiadores de formação metodista, a Inglaterra, onde começou a Revolução Industrial, não viveu algo parecido com a Revolução Francesa graças ao pregador John Wesley. A revolta que poderia brotar dos baixos salários e da miséria retratada pelo escritor Charles Dickens acabou sendo evitada, canalizada para uma prática conformista do cristianismo. O clima religioso entre os pobres na Inglaterra, já no século XIX, foi bem mostrado pela escritora George Eliot, precursora do feminismo inglês, no livro Silas Marner.
No Brasil, o surto do evangelismo se manifestou ainda nos anos 50 com pregadores da chamada “cura divina”, missionários norte americanos cujas pregações eram feitas com intérpretes. Em cerca de dez anos, formaram-se os pregadores brasileiros substituindo os precursores. Ainda no fim dos anos 50, surgiram os programas de rádio e televisão de pregação e doutrinamento, cujo sucesso levou à compra de emissoras de rádio e emissoras de televisão evangélicas.
O dinamismo dos evangélicos com suas pregações e propostas minimalistas surpreendeu o clero católico conservador, encontrou um terreno fértil e começou a se alastrar nas camadas populares, com maior aceitação que as mensagens sociais e políticas das lideranças jovens católicas da Ação Popular. O Golpe de 64 extirpou das igrejas católicas o espírito renovador iniciado pelo Papa João XXIII e criou o clima para a propagação das mensagens conformistas de um outro Evangelho, o da humildade e da sujeição ao poder político.
Paralelamente, nas igrejas “protestantes” tradicionais, presbiterianas, metodistas, batistas, a repressão teve o apoio de suas lideranças pra afastar dos púlpitos qualquer mensagem de “Evangelho social”. A mais marcante intervenção ocorreu na Igreja Presbiteriana, dirigida pelo reverendo Boanerges Ribeiro, ligado aos fundamentalistas norte americanos. Seminários foram fechados, seminaristas expulsos, nos chamados IPMs, inquéritos instalados nas igrejas.
O conhecido pastor James Stuart Wright foi também vítima dessa depuração e precisou ir trabalhar no secretariado do cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. Essa extraordinária aproximação ecumênica permitiu a elaboração do importante documento contra a repressão e tortura Brasil Nunca Mais.
Na contracorrente do Evangelho social, já com pastores nacionais no lugar dos norte americanos, os evangélicos se tornaram uma força religiosa, logo depois transformada em força política, conservadora e reacionária. Identificando em algumas das declarações do deputado Jair Bolsonaro os temas de suas próprias pregações, mais o fato de ser casado com uma irmã evangélica, as lideranças evangélicas viram nele a oportunidade de levarem suas igrejas e mensagens ao poder. Seria uma espécie de governo teocrático não declarado.
Assim, muito antes das eleições, o rebanho evangélico começou a ser preparado para cumprir o desejo de Deus de levar Bolsonaro à direção do país. A doutrinação foi bem sucedida, o rebanho garantiu a diferença sobre Fernando Haddad. Foi um verdadeiro milagre, pois os evangélicos negros não souberam do racismo do seu candidato e nem as mulheres souberam de sua misoginía. Assim como todos não souberam de suas declarações pelo uso da violência em oposição aos ensinos dos Evangelhos.
Hoje as lideranças evangélicas parecem decepcionadas, pois não chegaram ao poder como esperavam. Seria um castigo de Deus às suas ambições? Ou por também justificarem os crimes, torturas e perseguições dos anos da Ditadura? Uma coisa é certa, se Deus existe, nada tem a ver com seus pretensos representantes, que ignoram a verdadeira mensagem do Evangelho e se uniram com o Mal. (Publicado também no Observatório da Imprensa)
Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.
A influência de Deus na eleição de Bolsonaro
Arquivado em:
Quinta, 04 de Abril de 2019 às 05:52, por: CdB
Talvez se possa dizer ter sido Deus quem elegeu Jair Bolsonaro presidente. Usando-se o algoritmo para se poder entender a conjugação de uma coisa tão temporal, restrita e finita como uma eleição, mesmo sendo presidencial, com um personagem divino atemporal, universal e infinito, o resultado pode ser surpreendente.
Por Rui Martins: