Meu amigo Saul Leblon enviou-me uma carta na semana passada que, por esses mistérios do tempo, só me chegou às mãos, ou à tela, nesta semana. Nela, ele destaca trechos do discurso de André Lara Resende, agradecendo a recepção do prêmio Economista do Ano, que ele leu no jornal Valor:
"Se não existe alternativa à altura do capitalismo para a criação de riqueza, se este capitalismo é incapaz de sanar a questão da desigualdade, que depende essencialmente da valorização da vida pública; e se a desvalorização da política tem suas raízes justamente no desenvolvimento da mentalidade capitalista moderna, estamos diante de um desafio monumental."
"Este é o grande impasse de nosso tempo: a incompatibilidade entre o sistema mais eficiente na geração de riqueza e a valorização da vida pública e da cidadania, indispensáveis para dar sentido à riqueza material."
"Constato que a superação da inflação crônica não é condição de suficiência para a retomada do crescimento, e também já não tenho certeza de que o mero crescimento seja condição para a superação do subdesenvolvimento."
"O sistema não é capaz de resolver de forma automática a questão das desigualdades e da exclusão social, o que dependeria "essencialmente da vida pública, da política e da cidadania"".
"Isso deve começar pela reorganização da vida pública. Procurar compatibilizar o mundo inevitavelmente cada vez mais interligado e integrado com a valorização das comunidades locais. Deve-se tentar reaproximar os homens públicos de suas comunidades, reverter de forma drástica a influência da publicidade e do marketing na vida pública", enumera ele. "Infelizmente, não me parece uma agenda fácil, nem passível de ser implementada a curto prazo".
A isso o meu amigo Saul Leblon, que mora na Moóca, acrescenta que essas frases do discurso deram um banho de água gelada nos golden boys da economia de mercado presentes, que esperavam uma ode a ela e a eles. Ele assinala que a importância do dito na ocasião vem menos do dito do que de quem o diz, uma vez que foi um dos idealizadores do Plano Real. Lembrei-me (eu, Flávio Aguiar) da presença de Joseph Stiglitz no Fórum Social da Índia, em 2004, a repetir o que os fóruns em Porto Alegre já tinham repetido em 2001, 2002 e 2003. Mas ali era um dos assessores de Bill Clinton que o dizia, e isso fazia muita diferença.
Assinala ainda o Leblon que essas frases mostram o quanto a ortodoxia econômica perdeu o eixo, e que desse esfarelamento não está saindo pastel nenhum, só fritura de azeite velho, aquela rapa de fuligem que fica nos tachos das pastelarias ao fim do dia. E acrescenta: "esse é o impasse de todas as candidaturas conservadoras hoje: o discurso da ortodoxia econômica não consola nem convence mais ninguém, nem mesmo seus correligionários, que o repetem como aqueles religiosos que repetem as palavras do catecismo só porque o decoraram, não porque acreditem nele".
Continua o Leblon: "O discurso conservador, que antes pelo menos era destruidor e irrequieto, se burocratizou, arremeda a burocratização do discurso a que chegara, no pós-guerra, um certo estalinismo que se dizia de esquerda. A direita brasileira se recusa e vai continuar se recusando a assumir qualquer papel de resquício desenvolvimentista, porque ela perdeu a condição conceitual de entendê-lo, entendendo o Brasil e a ela mesma como um campo de prestação de serviços a interesses alheios, que confunde com a civilização. Isso quanto aos menos ruins, porque os outros acham que o país não vale nada mesmo e que riqueza é pra ser curtida nas suas fantasias norte-americanas e européias".
"E até hoje", acrescenta ele, "a esquerda brasileira ainda reluta em compreender a conceituação desenvolvimentista que herdamos do passado mas relegamos ao passado - e é interessante lembrar disto na semana em que aniversaria o suicídio de Vargas, essa esfinge da política brasileira. O curioso, Flávio, é que dessa vez tenhamos nós todas as perguntas
Rio de Janeiro, 30 de Outubro de 2024
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