Rio de Janeiro, 03 de Dezembro de 2024

Alguns itens relevantes sobre a Ucrânia

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Domingo, 27 de Fevereiro de 2022 às 12:11, por: CdB

Em 13 pontos, o cientista social e jornalista Fábio Metzger, em artigo difundido pelas redes sociais nas últimas horas, levanta questões relevantes para o entendimento da crise militar, em curso, na Ucrânia.

Por Fábio Metzger - de São Paulo
1) A 'grande imprensa' não se preocupa em informar. Mas antes de existir a Rússia de Moscou, ou a Moscóvia, havia a Rússia de Kiev. Era ali que nasceu a Rússia. E a partir dali que a Rússia se expandiu. Não era Ucrânia. Era Rússia. Como era Rússia, a Rússia de Minsk, ou a Rússia Branca, ou a Bielorrússia. A primeira Rússia formou-se nos séculos X ao XII. Dos séculos XIII ao XVI, teve a expansão da de Moscou.
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A Rússia e a Ucrânia mantêm uma história secular de comércio e convivência pessoal
2) Foi nesse período que as outras duas Rússias foram, pelas vias das relações de suserania e vassalagem, integrando-se a um outro reino. O chamado Reino das Duas Terras, ou Confederação Lituano-Polaca. Uma monarquia essencialmente católica. Enquanto a Rússia de Moscou era Ortodoxa, com patriarcado próprio. 3) Em determinado momento, essa monarquia se dissolveu. Restou o Grão Ducado de Varsóvia, na verdade a Polônia, o Império Austríaco, e todo o restante que foi apropriado pelo Império czarista Russo. Onde a Rússia de Minsk e a maior parte da Rússia de Kiev foram incorporadas. Uma parte menor da Rússia de Kiev foi adicionada ao Império Austríaco, uma monarquia plurinacional comandada pelos Habsburgos. A nacionalidade russa de Kiev ganhou uma denominação nova: passaram a ser os rutenos. Uma identidade russa, segundo a perspectiva Habsburgo. Demais repúblicas 4) Com a Revolução Russa em 1917, e todas as demais etapas, incluindo aqui o Tratado Brest-Litovski, a população da maior parte do território da Rússia de Kiev ganhou independência, pelo menos até a derrota alemã em 1919, e a vitória dos bolcheviques na Guerra Civil russa de 1917-1922. Esse território definiu uma identidade moderna, com a denominação "Ukraina", que significa "fronteira". Para sair da I Guerra Mundial, os bolcheviques toparam abdicar do território. Com a derrota alemã, puderam reincorpora-lo como uma república na União das Repúblicas Soviéticas. 5) Com o fim da União Soviética, por óbvio, a Ucrânia também ganhou o direito de ser república independente, já que era um tratado de união de repúblicas. E dissolvida essa união, cada uma era uma república por si só. A Ucrânia, a Bielorússia, assim como todas as demais repúblicas. 6) O que isso quer dizer? Que a Ucrânia é uma mera e barata invenção, e logo ela não tem razão de ser? Não, obviamente. Há especificidades que são dela. Por exemplo: a Rússia tem uma Igreja Ortodoxa de Patriarcado, em Moscou. Parte importante dos ucranianos seguem esta Igreja. No entanto, os ucranianos também têm a sua Igreja, igualmente de rito oriental, mas subordinada a Roma, e não a Moscou - é a Igreja Uniata.

Bastidores

7) Vamos então definir uma coisa: a Ucrânia é sim um modo de ser Rússia. Assim como a Bielorrússia e a própria Rússia. A Ucrânia, enquanto Rússia de Fronteira (Ukraina Rus); a Bielorrússia, enquanto Rússia Branca (BelaRus); e a Rússia, enquanto Rússia Eurasiática (Eurasia Rus). Tanto quanto a Alemanha é uma forma de ser germânica, e a Áustria é outra forma. Ou então, os diversos países árabes. A Arábia Saudita, que está na Península Arábica, no coração das Arábias, a Síria como uma Arábia mediterrânea, o Iraque como uma Arábia do Entre Rios (Tigre e Eufrates), a Argélia como uma Arábia africana, o Marrocos, uma Arábia Atlântica, e assim por diante… 8) Nesse sentido, a Ucrânia tem sim direito à auto determinação. O problema não é esse. É essencialmente geopolítico. Ela está governada por fantoches do Ocidente. E foi vítima de uma guerra híbrida semelhante à nossa, com um agravante. Lá, houve um golpe de Estado promovido por milícias nazistas... com apoio explícito de Washington e aliados. A Ucrânia negociava dois acordos de livre comércio. Um com a União Europeia, mais vantajoso, outro com a Rússia, que estava começando a sua União Aduaneira Eurasiática. No passado, era possível negociar mais de um acordo. Só que, de repente, teve um governo que decidiu que isso não poderia mais acontecer. Era o governo Obama, onde Biden era o vice presidente. Governo Democrata, posando para o grande público de defensores da democracia, mas nos bastidores, apoiando milícias nazifascistas. Até então vários países, o Brasil incluído, acreditaram de boa fé que a democracia e a globalização poderiam ser um jogo ganha-ganha. Os EUA ali, de maneira dissimulada, começaram a impor regras não escritas: a globalização e a democracia é só para os ricos. Puritanos na polidez, hipócritas nas atitudes. 9) Os ucranianos, coitados, ficaram sem o acordo com a União Europeia que, aliás, não teria condições de ser honrado. Ainda mais depois da crise de 2008-9, quando Grécia, Itália, Espanha e outros países começaram a ser arrochados pela troika Bruxelas-Frankfurt-Washington (União Europeia, Banco Central Europeu, FMI). Por outro lado, além de não fechar o acordo com a Rússia, viram a Crimeia ser anexada pelo país vizinho.

Maturidade

10) Ali, Putin rompeu o direito à autodeterminação ucraniana? Verdade. No entanto, Putin fez uso da velha cartada do Direito Internacional. Se a Otan passou por cima da ONU para atacar a Iugoslávia em 1999. Se a mesma OTAN, dando suporte às suas tropas, permitiu que a província do Kosovo se declarasse independente, passando, mais uma vez, por cima da ONU. Se EUA e seus aliados passam por cima da ONU, e decidem, por conta própria, atacar Iraque e Afeganistão, para promover "mudanças de regime". Então o Direito Internacional passou a ser interpretado de forma a oferecer a possibilidade de a Rússia fazer o mesmo. 11) Então, por mais que se fale, é preciso se lembrar de quem está provocando a situação. É o governo Biden, por meio da Otan. Sabendo o tipo de governante que é Putin. E do tipo de governo que é a Rússia. Não se trata da pessoa do governante. Mas sim da estrutura de poder. Um sistema despótico. Herança do czarismo, do socialismo real e do que se construiu ao longo de séculos. Não para se justificar. Mas para se entender o contexto. Porque sai Putin. Mais adiante, surge outro déspota. E a Ucrânia, assim como a Bielorrússia, operam em uma lógica semelhante. Bom seria se fossem democracias. Será uma grande conquista se, em algum momento, esses países chegarem à maturidade de um regime democrático. Mas esta não é a realidade deles. Nem a Rússia, nem a Ucrânia. 12) A pior notícia? Trump está gostando de tudo isso. Ele quer ver o circo pegar fogo. Ele é o retrato da degradação da sociedade estadunidense. Sem filtros. Mas Biden e Obama alimentam nazistas e golpistas pelo mundo afora. Enganaram a todo mundo com a história de que todos ganham com a democracia e a globalização. Todos, não. Só quem faz parte do "Primeiro Mundo". Os países da América Latina não fazem parte. Nem a Ucrânia. 13) Assistindo a tudo isso, a China leva adiante o seu projeto "One Road, One Belt", a nova rota da seda. com tanta infraestrutura destruída na Ucrânia, o país isolado, e a Rússia sob sanções, adivinha quem aparece para a "reconstrução" do país? Acertou! E sem as velhas exigências ocidentais de arrochar a economia local, e de privatizar a infraestrutura, com o antigo e surrado discurso do "Estado Mínimo". A Ucrânia terá perdido a União Europeia, ficará isolada diante da Rússia, mas muito provavelmente, humilhada e desesperada, verá o gigante oriental lhe estender a mão… Não é o mundo que sonhávamos. Fábio Metzger é cientista social e jornalista.
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