Política, crime organizado e religião reforçam o tema central desta mescla de drama, thriller e filme-noir do cineasta inglês Steve McQueen.
Por Cloves Geraldo - de São Paulo
Um dos encantos da arte cinematográfica é refletir a realidade como se ela brotasse do cérebro do cineasta. Ele a organiza de forma a tornar ficção a história contada através de imagens. Pelos meandros da narrativa, da trama e da estética, ele se vale dos atores, da fotografia, dos cenários e da montagem para dar veracidade ao tema central do filme. É o que faz o cineasta inglês Steve McQueen (Londres, 09/10/1969), neste As Viúvas, onde mescla drama, thriller e filme-noir em 128 minutos de boa história. E o espectador se depara com a corrupção e os conflitos raciais.
A exemplo de Shame (2011) e 12 Anos de Escravidão (2013), seus filmes anteriores, McQueen envolve o espectador num universo onde os personagens são tragados por uma realidade que os aprisiona. Agora é o quarteto de mulheres que de repente se vê diante de impasses que as levam a enfrentá-los para são serem penalizadas pelo que nada sabem. Sem ao menos ter convivido antes, duas afrodescendentes Verônica (Viola Davis) e Belle (Cyntia Erivo) se unem à caucasiana Alice Gunner (Elizabeth Debiki) e à latina Linda Perelli (Michelle Rodrigues) para enfrentar poderosos inimigos, surgidos após os assassinatos de seus companheiros.
Este é, aparentemente, o tema central deste As Viúvas, cujas primeiras imagens são as dos cantos entoados pelos fiéis no culto realizado numa Igreja Protestante, seguida pelo sermão do pastor afrodescendente. Nada mais normal, não fosse seguido pela intrigante conversa entre dois candidatos a vereador pela cidade de Chicago, Illinois/EUA (1803. 2.716.450 mil habitantes, em 2017). Sem rodeios ou temores, o caucasiano Jack Mulligan (Colin Farrel) e o afro Manning (Brian Tyree Henry) tentam convencer o pastor a apoiar um deles. Mulligan afirma que há décadas sua família tem um representante na Câmera Municipal e quer o voto dos afros.
“Maioria não sabe que o vereador faz”
Em meio a esta argumentação, o jovem descendente de irlandês sai com uma enviesada argumentação, que não desmente seu desapreço ao cidadão-eleitor. “A maioria das pessoas não sabe o que um vereador faz, inclusive o próprio vereador”. A negociação prossegue no mesmo tom, deixando ao pastor a decisão do apoio a ele ou a Manning. E o pregador quando o faz não deixa dúvida sobre sua preferência, na qual envolve somas e somas de dólares. Uma prova de que o apoio ao candidato se prende mais à retribuição financeira do que ao compromisso com o eleitorado afrodescendente.
McQueen introduz assim o tema central de As Viúvas. Será a política que irá nortear a narrativa e a trama. O que segue à reunião é um exercício de extrema violência ao estilo do Sam Peckinpah (1925/1984) de Meu Ódio Será Sua Herança (1969). São sequências nas quais o jovem Jatemme (Daniel Kaluuya) tortura e executa suspeitos de traição ao irmão Manning pelo roubo dos US$ 2 milhões que iriam financiar a campanha dele a vereador de Chicago. E sem o dinheiro, ele põe sua candidatura em risco e fortalece a do adversário Jack Mulligan.
Mas não se trata apenas de um concorrente assustado com a perda dos recursos financeiros. A disputa envolve poder, acesso as milhões de dólares, via obras, e o sonho de Mulligan ser eleito prefeito. Isto o obriga também a agir, É onde entra o crime organizado, ávido para se valer da disputa para elevar seus ganhos em ações paralelas. Daí corpos são estilhaçados por sucessivos disparos, dando ao espectador a ideia de que rolam na tela imagens de um drama policial. Deste modo, McQueen envolve a política, a religião e o crime organizado através de três subtramas.
“A arma é a melhor amiga da mulher”
Mas é a trama principal estruturada por McQueen que une as três linhas narrativas, a partir da ação centrada no quinteto de viúvas. A cada sequência, sob a liderança de Verônica, as outras três, mesmo contra a vontade, caso de Alice, seguem sua orientação. Inclusive ela lhes explica a razão de estarem juntas e armadas. ”Minha mãe sempre diz que a arma é a melhor amiga da mulher”. Elas estão ali por ignorar o que, na verdade, faziam seus companheiros antes de serem enterrados por elas. Seus perseguidores só lhes dizem que devem lhes devolver US$ 2 milhões.
Se elas não sabem, muito menos o espectador. Para ele, o quinteto formado por mulheres assume o papel de protagonista da história. É sob o olhar e visão delas que ele se deixa levar pela subtrama, que é vingar seus companheiros. Os obstáculos para isto são enormes e elas vão aprendendo ao longo do enfrentamento de todo tipo de inimigo. A professora Verônica, em especial, começa a ter noção do que fazia seu companheiro Harry Rawlins (Lian Neeson), por anos e luta para não o ver acusado do que não fez. Os inimigos, porém, têm outra imagem dele e o espectador também.
O recurso de estruturação narrativa de McQueen e seu co-roteirista Gillian Flynn, baseado no livro As Viúvas (2018), da inglesa Linda La Plante (Liverpool, 1943), foi reforçado pela montagem-pirâmide feita por Joe Walker. Ou seja, começa pela base e vai ampliando até fechar em cima. Desta forma têm-se a visão do todo. Esta tarefa cabe a Verônica que, ao puxar os fios que levaram à execução de Harry e seus quatro parceiros, acaba por desvendar todas conexões. E só assim consegue chegar a quem controlava, de fato, os elos de um imenso esquema de corrupção, assassinatos, compras de votos e silêncio absoluto na Chicago de hoje.
“É o que isto é: um negócio”
A melhor conceituação sobre o que ela descobre vem do jovem Jack Mulligan, noutras de suas reprováveis frases. Todo o esquema para a sustentação política da família para se manter no poder político em Chicago decorre da visão do patriarca Tom Mulligan (Robert Duvall). É de que, na citação do filho, ele nunca quis entrar em outro empreendimento. “É o que isto é: um negócio”. Daí a junção da política com segmentos da comunidade afro-americana, dos protestantes e do crime organizado. A perplexidade de Verônica ao deparar-se com tal estruturação é de perplexidade. Só então se dá conta das conexões de Rawlins e o que, de fato, está em jogo.
Ao construir sua narrativa como um thriller, McQueen vai encaixando as peças da trama até o impactante desfecho. Não sem transformar Verônica numa personagem de filme-noir. Ela é a mulher apaixonada pelo companheiro Rawwlins, com quem formava um belo casal multirracial. E jamais desconfiou de suas perigosas relações. Mas, ao contrário da mulheres-fatais de outros clássicos, ela não urde ou tenta pegá-lo em falso. Só reage ao ver-se numa reprovável descoberta. Queen transforma-a assim numa anti-heróina, por ela proteger a si mesma.
Mas não só Verônica se mostra à altura do desafio imposto pela vertente política do esquema de corrupção. As outras mulheres, cada uma a seu modo, enfrentam o inimigo com destreza e coragem. Belle se prepara fisicamente de forma a superar os obstáculos e se encaixa de forma a executar sua parte no plano, como uma veterana nas missões de guerra. Enquanto Alice se envolve numa tarefa perigosa, obscura e erótica, da qual quase sai chamuscada. MacQueen, deste modo, põe as personagens femininas noutro patamar, ao unir força, coragem e cérebro, num caso raro.
Verônica e Alice se esbofeteiam
Não bastasse, criou a melhor sequência do filme ao pôr Verônica e Alice numa disputa pela liderança do grupo. A afro e a caucasiana se esbofeteiam com violência. E terminam por se encarar, por longos e profundos segundos. Há uma barreira entre elas. É daquelas sequências sem diálogos que ficam na história da luta racial no cinema pela ousadia da escritora e do cineasta. Tem o mesmo impacto da sequência em que o policial afro Tibbs (Sidney Poitier, 20/02/1924) esbofeteia o fazendeiro branco racista, em No Calor da Noite (1967), do canadense Norman Jewison (21/07/1926). Uma sequência que provocou aplausos no cinema.
Além de transitar por vários gêneros: drama político, policial, thriller, McQueen trabalha o clima de “As Viúvas” através da fotografia de Sean Bobbitt, de grandes planos, cinzentos ambientes, às vezes utilizando o claro-escuro. E, como é normal num thriller, em ação contínua, sem esquecer que está, na verdade, fazendo um filme-denúncia contra a corrupção no meio político, envolvendo instituição religiosa e o crime organizado. O desfecho deixa o espectador a pensar que se trata de ficção, mesmo tendo a realidade a sustentar a trama em altos volts. O real é pior.
Widows. Inglaterra, Irlanda do Norte. Drama-político, policial, thriller. 2018. 128 minutos. Trilha sonora: Hans Zimmer. Montagem: Joe Walker. Fotografia: Sean Bobbitt. Roteiro: Steve McQueen e Gillian Flynn, baseado no livro de Linda La Plante. Direção: Steve McQueen. Elenco: Viola Davis, Colin Farrel, Robert Duval, Lian Neeson, Elizabeth Debick, Cyntia Erivo, Lucas Hass, Daniel Kaluuya, Michelle Rodrigues.
Cloves Geraldo, é jornalista e cineasta, dirigiu os documentários TerraMãe, O Mestre do Cidadão e Paulão, lider popular. Escreveu novelas infantis, Os Grilos e "Também os Galos não Cantam.
As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil