Guedes revelou-se um enorme falastrão: gosta de falar bastante, mas entrega muito pouco do que havia prometido. No entanto, as elites do financismo não devem ter muito do que reclamar.
Por Paulo Kliass – de Brasília
Paulo Guedes parece ter algum tipo de obsessão pela cifra de um trilhão, sejam reais ou dólares. Em várias ocasiões, o ex super Ministro da Economia lançava esse valor para se referir às supostas façanhas que ele pretendia desenvolver no âmbito da economia brasileira. Este era o cenário logo depois da posse de Jair Bolsonaro, quando o ex banqueiro passou a ser apresentado como o todo poderoso da economia e prometia fundos e fundos, só faltando mesmo a garantia de venda e entrega de terrenos na Lua aos ávidos e interessados do financismo especulativo. É importante lembrar que essa caricatura do chicago old boy foi uma peça importantíssima para assegurar a vitória de um capitão quase desconhecido do grande público, a não ser por suas criminosas declarações em favor da ditadura militar, da prática da tortura, da pena de morte e da liberação do uso de armas sem controle. Foi Guedes quem abriu as portas da nata do sistema financeiro tupiniquim a esse personagem tosco, a quem a maior parte das elites ainda enxergavam com bastante desconfiança. O candidato da extrema direita logo percebeu que o melhor seria ele mesmo se abster do debate de temas da área econômica. Assim ele logo terceirizou seu programa de governo e os lemas da campanha àquele que chamou de “meu Posto Ipiranga”. Ao longo do primeiro ano de governo, Guedes ainda conseguia enganar os incautos e ludibriar os ingênuos, ao passo em que oferecia aquela piscadela malandra na direção dos mal-intencionados. A maior parte de nossas classes dominantes sonhava alto com as bravatas que ele proferia a respeito da “privatização de todas as empresas estatais” e de implementação de uma política visando a destruição completa do Estado brasileiro. Os defensores do neoliberalismo em nossas terras parecem estar bastante atrasados em relação aos movimentos verificados nos países desenvolvidos quanto à pauta econômica e ainda reverberam seus desejos absolutamente anacrônicos de um Estado mínimo, para não dizer inexistente.As promessas do trilhão em 2019
Mas o ano era 2019 e o governo acabava de tomar posse. Logo no mês de fevereiro, Guedes lança o primeiro ato falho do trilhão. O cenário envolvia o envio da proposta original da Reforma da Previdência ao Congresso Nacional. Sabendo das dificuldades em aprovar o conjunto monstruoso das maldades ali previstas, o aprendiz de banqueiro jogava para seus colegas no interior do financismo, com o intuito óbvio de buscar o apoio das classes médias e dos grandes meios de comunicação para a proposta. E logo veio a imagem de o governo federal “economizar R$ 1 trilhão” com a medida, que previa a implantação generalizada do sistema de capitalização e de contas individuais. Na verdade, pouco importa se as mudanças no texto inicial, que foram promovidas durante a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional, não permitiram que essa meta fosse atingida. Guedes seguiu insistindo na cifra mítica do trilhão. No mês seguinte, o cenário farsesco tinha continuidade. O trilhão apenas mudava de endereço. Com o intuito de arregimentar apoios a seu projeto de privatização completa, Guedes promete que a venda de todas as empresas estatais renderia mais do que um trilhão aos cofres públicos. Ora, qualquer pessoa que tivesse um mínimo de experiência no acompanhamento de políticas públicas em nosso País sabia que essa era uma meta inatingível. Mas na cerimônia de posse do então novo presidente do Banco Central, em março de 2019, ele chegou a afirmar que havia sido pessimista quando falava em arrecadar um trilhão antes do início do governo. Segundo Guedes, os cálculos atualizados naquele momento permitiriam que os valores chegassem a R$ 1,25 trilhão. Enfim, decorridos quase 40 meses de seu desgoverno, parece ter ficado claro para todo mundo que o rei da economia está nu. Guedes revelou-se um enorme falastrão: gosta de falar bastante, mas entrega muito pouco do que havia prometido. No entanto, as elites do financismo não devem ter muito do que reclamar. Afinal, seu preposto no comando da economia terminou por oferecer um cardápio amplo de bons serviços prestados às causas do universo das finanças. Promoveu um imenso desmonte das políticas públicas durante seu mandato, abrindo o espaço para a maior penetração do capital privado na oferta de serviços públicos, a exemplo de saúde, previdência, educação, assistência, saneamento e outros. Conseguiu privatizar algumas empresas estatais, ainda que longe da meta trilionária. Esmagou a administração pública federal, promovendo uma verdadeira destruição das capacidades do Estado brasileiro. Tudo isso, obviamente, em benefício do capital privado, em especial os grupos articulados ao sistema financeiro.R$ 1 trilhão de pagamento de juros
E finalmente conseguiu cumprir sua meta do trilhão em outro departamento, mas com a mão inversa da narrativa utilizada. Durante os 3 primeiros anos em que esteve à frente do comando econômico, Guedes transferiu ao sistema financeiro mais de R$ 1 trilhão, sob a rubrica de pagamento de juros da dívida pública. Para quem acha que estou exagerando, basta acessar os dados oficiais das contas públicas do governo federal nas páginas do Ministério na internet. Os demonstrativos consolidados do famoso “Resultado do Tesouro Nacional” exibem, com clareza de detalhes, as diferentes rubricas de receitas e despesas da nossa administração. Uma das rubricas que mais pesam no conjunto dos gastos é aquela relativa a juros pagos. Apesar de todo o discurso neoliberal contra o fato de o governo apresentar um suposto excesso ou exagero em suas contas orçamentárias, o fato é que o exercício retórico esbarra no conceito utilizado da metodologia “primária”. Por meio deste artifício, são deixadas de lado todas as informações e a contabilidade relativas às despesas financeiras. Leva-se em conta apenas os chamados “gastos primários”. Assim, não são levados em consideração os impactos provocados pelo pagamento de juros da dívida pública. Em 2021, por exemplo, essa foi a segunda maior rubrica, vindo apenas atrás de benefícios previdenciários. Os gastos com juros representaram 4,7% do PIB e os da previdência social alcançaram 8,3% do PIB. O gráfico abaixo nos informa os valores anuais e totais com pagamento de juros, relativos ao triênio 2019/2021. Assim, pode-se perceber que esse é o verdadeiro trilhão do Guedes. Ao invés da enganação de uma suposta economia nas despesas governamentais ou de uma arrecadação ilusória, o que se viu foi que a cifra se converteu, na verdade, em um gasto promovido pelo governo federal e dirigido a um setor bastante reduzido de nossa população. A despesa realizada com juros beneficia apenas o conjunto da banca e uma parcela restrita dos setores de nossa sociedade que têm acesso a mecanismos financeiros para proteção de suas aplicações patrimoniais.Ao invés de estimular os gastos públicos em áreas que promovam desconcentração da renda e da riqueza, o governo faz exatamente o oposto. Aplica de forma draconiana a rigidez do controle da austeridade fiscal nas despesas de natureza social (saúde, educação, previdência, etc), ao tempo em que promove um “liberou geral” nas rubricas de natureza financeira. Essa é apenas uma das facetas da perversidade do modelo de teto de gastos, em vigor desde 2016 sob o charmoso título de “Novo Regime Fiscal”, quando a duplinha dinâmica Temer & Meirelles conseguiu fazer com que o poder legislativo aprovasse a famigerada EC 95.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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