Bolsonaro enfrentará simultaneamente duas prováveis frentes de batalha espinhosas nos próximos dias. A mais decisiva, obviamente, é a CPI da Pandemia aberta no Congresso, cujo relator será o senador Renan Calheiros. Este é o enfrentamento mais importante, pois sob todos os aspectos, o futuro do país será definido a partir do enfrentamento à política sanitária implementada pelo insano que nos governa.
Por Jorge Gregory - de Brasília
Bolsonaro enfrentará simultaneamente duas prováveis frentes de batalha espinhosas nos próximos dias. A mais decisiva, obviamente, é a CPI da Pandemia aberta no Congresso, cujo relator será o senador Renan Calheiros. Este é o enfrentamento mais importante, pois sob todos os aspectos, o futuro do país será definido a partir do enfrentamento à política sanitária implementada pelo insano que nos governa. O relator, já confirmado, representa uma dura derrota governista e aponta para uma promissora expectativa de que a Comissão de Inquérito cumprirá seus objetivos, ou seja, de condenar o genocídio praticado pelo governo. Não menos preocupante para o governo deve estar sendo a possibilidade de a ministra do STF, Carmen Lúcia, determinar a abertura de investigação contra o ministro Ricardo Salles, em decorrência da notícia-crime apresentada pelo delegado Alexandre Saraiva. Muitos devem estar pensando que o fato de Salles beneficiar madeireiros ilegais não passa de mera corrupção. Entretanto, para além de corrupção está a implementação de uma política ambiental criminosa e devastadora com a qual corroboram tanto Bolsonaro como também os militares. Salles já havia recebido efusivos elogios de Villas Boas no recente livro biográfico de autoria do pesquisador Celso Castro. Na obra, o general trata o ministro como injustiçado e incompreendido e que estaria fazendo um grande trabalho desmontando as estruturas corruptas dos órgãos ambientais. Questionado sobre a denúncia do delegado da Polícia Federal, Mourão, em que pese reconhecer como excelente o trabalho de Saraiva, afirma simultaneamente que Salles tem olhar economicista do meio ambiente e uma visão correta das coisas. Seria esta uma visão pessoal dos dois generais de pijama ou uma opinião institucionalizada do Exército? Para responder a tal questão, tomo aqui minha curta mas proveitosa relação com as Forças Armadas, que se deu principalmente no ambiente amazônico. No início de seu primeiro governo, por sugestão do então deputado Aldo Rebelo, o ex-presidente Lula demonstrava grande entusiasmo com a ideia de retomar o Projeto Rondon, programa extensionista implementado pelo regime militar, que levava estudantes universitários para a Amazônia e outras regiões remotas. No governo anterior, Ruth Cardoso já havia implementado o programa Universidade Solidária, com características muito próximas do programa dos militares. Na academia, o programa da primeira-dama enfrentou forte resistência. Ganhou a adesão de poucos professores. A tese geral defendida pelos que não concordavam, era de que a extensão deveria cuidar do entorno pobre das universidades, diferente do que propunha o Universidade Solidária, que era deslocar o estudante, em ações extensionistas, para regiões distantes. Nesse debate, sempre me posicionei afirmando que a visão predominante dos que defendiam a atuação dos estudantes ao derredor das universidades, era assistencialista e não levava em conta o papel da extensão na formação cidadã do estudante. Esclarecendo, minha opinião era de que o estudante das universidades federais, predominantemente dos extratos da classe média/média e média/alta, ao se integrarem em programas de extensão no entorno de suas escolas, não se desligam de suas bolhas de vida e encaram a atividade como mera assistência aos menos favorecidos. Ao contrário, ao se desligarem de seus ambientes de vida, ainda que por curto espaço de tempo, vivenciando o dia-a-dia de comunidades distintas da sua, tomam um choque de realidade que os marca para o resto da vida. Não é mera coincidência que boa parte dos hoje ativistas de esquerda que foram universitários na década de 70, passaram pelo Projeto Rondon. No ano de 2003, quando Lula demonstrou tal entusiasmo para retomar o programa, eu exercia a função de chefe de gabinete da Secretaria de Educação Superior do MEC. Aproveitei a oportunidade e formulei um esboço de proposta de estruturação do programa, numa visão acadêmica, e encaminhei ao então ministro Cristóvão Buarque e ao meu Secretário, Carlos Antunes. Ocorre que vários ministérios se lançaram em uma disputa por quem coordenaria tal programa e, segundo me relataram, em uma reunião para tratar do assunto, Lula teria afirmado que segundo a mãe dele, cachorro que tem muito dono morre de fome. Com tal afirmação, determinou que o Ministério da Defesa coordenaria o programa com o apoio do Ministério da Educação. Tomada tal decisão, fui indicado para compor a Comissão de Reestruturação representando o MEC e por alguns meses passei a conviver com os militares. Definimos a Amazônia Ocidental como área do relançamento. Passamos, então, a realizar algumas viagens à região, visitando prefeituras, órgãos governamentais e, principalmente, as unidades militares que serviriam de base de apoio ao projeto piloto de retomada do programa. É prática no meio militar, como primeiro ato, ao receber alguma comitiva externa em uma de suas unidades, levá-la para um auditório onde o comandante ou um dos oficiais do estado maior fazem uma apresentação da unidade, seus objetivos e seu trabalho. Isto ocorreu tanto conosco, membros da Comissão, como com os estudantes que participaram do piloto, em todas as unidades visitadas. Ao lado do entusiasmo dos militares com a retomada do programa, algumas afirmações feitas nessas apresentações me chamaram a atenção e contribuiriam depois para que eu formasse uma opinião sobre a visão militar da Amazônia.Os potenciais econômicos da região
Em todas as reuniões eram destacados os potenciais econômicos da região, a cobiça externa por tais riquezas, a ação perniciosa de ONGs estrangeiras e a questão indígena. Quanto às ONGs, em especial as de confissão evangélicas, de fato pude constatar em várias aldeias indígenas a ação de pastores norte-americanos e europeus fazendo um verdadeiro trabalho de destruição da cultura indígena. O filme Brincando nos Campos do Senhor, de Héctor Babenco, retrata de forma muito clara estas práticas. Em que pese os militares fazerem a crítica de que tais ações constituíam ameaça externa à nossa soberania, o que concordo, ao tratarem das populações indígenas, sempre questionavam se são culturas que queremos preservar? “Esta é uma discussão”, concluíam. Fica claro aqui que não só a ação das ONGs constitui um incômodo para os militares, como a própria existência de populações indígenas vivendo em reservas demarcadas. Houvesse alguma preocupação com sua preservação, eles perguntariam aos próprios indígenas se eles querem preservar suas culturas e não se nós brancos queremos preservá-las. Para os militares, no entanto, é inadmissível a expressão “povo indígena”, pois qualquer ideia que remeta à multietnicidade é uma quebra da unidade nacional e uma ameaça à defesa de nossa soberania. Assim também é inadmissível para eles pensar que no Brasil há na prática uma segregação sociorracial. Para eles, é tão somente desigualdade social que independe da herança histórica decorrente do escravismo. Na visão deles de que somos um povo único, caracterizado pela miscigenação do branco europeu com negros e indígenas, os bolsões de populações indígenas, vivendo em reservas e com suas culturas próprias, devem ser extintos, com suas populações incorporadas à nossa civilização e à nossa cultura miscigenada e que tal integração seria crucial para a defesa militar do território nacional. A afirmação de Bolsonaro, dirigida por várias vezes aos indígenas na campanha eleitoral, de que quer que eles “tenham os mesmos direitos que nós brasileiros”, reflete não uma opinião pessoal, mas sim o pensamento militar. Ou seja, ao preservarem suas culturas e viverem em reservas, supostamente os índios não seriam brasileiros e sim corpos estranhos, constituindo-se em ameaça à defesa do território.Ocupação populacional da Amazônia
Na visão militar, a ocupação populacional da Amazônia também é fator determinante para a defesa do território. Nesta perspectiva, não só se incomodam com a existência de populações indígenas, como são absolutamente contra a preservação ambiental, pois ela se constitui em um entrave para a alocação de grandes contingentes populacionais na região. Ainda na ditadura, com tal objetivo distribuíram terras, incentivaram a grilagem e até mesmo garimpos, como a Serra Pelada, por meio do sanguinário Major Curió. Nesse sentido, a visão dos militares está em absoluta sintonia com Ricardo Salles, de que se deve abrir a porteira para a boiada passar. A boiada da exploração ilegal da madeira, do garimpo e da mineração, pois com a devastação virá a ocupação populacional, garantindo a defesa do território. Obviamente temos que nos preocupar com nossa defesa territorial, com a exploração das riquezas naturais e minerais da Amazônia, assim como combater a invasão de certas ONGs estrangeiras. No entanto, a visão de defesa pela ocupação populacional é tão arcaica quanto a Doutrina de Segurança Nacional, gestada na guerra fria, que ainda alimenta o imaginário das nossas Forças Armadas. Preservar ou não suas culturas é uma decisão que cabe tão somente aos indígenas e a nós nos cabe aprender a conviver com a diversidade, a respeitar seu espaço e os seus direitos, e isto não tem nada a ver com identitarismo. A questão ambiental não diz respeito exclusivamente à pressão externa, mas também à nossa capacidade de empreender um desenvolvimento sustentável, em benefício de toda a população. Caso vá a frente tal denúncia, mais que confirmar ou não possível prática de corrupção de Salles, possibilitará tornar evidente essa visão obtusa e retrógrada não só de Bolsonaro e seu ministro, mas também das altas patentes das Forças Armadas. A destruição que está sendo promovida por tal política, tanto na Amazônia quanto no Pantanal, está provocando danos de tal dimensão que nenhuma política de segurança e defesa justificam. Assim como é necessário dar um basta à política sanitária deste governo, também é necessário dar um basta à sua política ambiental. A abertura dessa investigação por parte do Supremo é tão crucial quanto está sendo a instalação da CPI da Pandemia.Jorge Gregory, é jornalista e professor universitário, trabalhou no Ministério da Educação (MEC).
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