Para seus quadros, os DOI-Codi’s ofereciam remunerações elevadas e, no caso dos militares, a perspectiva de ascensão meteórica na carreira.
DO SERVIÇO SUJO SE INCUMBIAM OS RAPINANTES – A esquerda armada expropriava bancos, executava operações altamente rentáveis como o roubo do cofre das propinas dadas pela corrupção ao ex-governador Adhemar de Barros.
Então, os militantes às vezes portavam somas vultosas consigo ao serem presos.
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Edição histórica: repúdio à morte de Schreier |
Nas organizações em que militei, a VPR e VAR-Palmares, cada combatente dispunha de um substancial fundo de reserva, que deveria ser mantido intocado até uma circunstância extrema, como a de ele ficar descontatado e ter de fugir do País.
Dinheiro, armas, veículos e até objetos de uso pessoal dos militantes dessas organizações eram, por sua vez, expropriados pelos captores, que os dividiam a seu bel-prazer, nunca o restituindo aos proprietários expropriados.
Além disto, os empresários financiadores da repressão contribuíam para as caixinhas de prêmios pela captura ou morte de militantes clandestinos. Cada revolucionário importante tinha o valor previamente fixado, daí o empenho obsessivo dos rapinantes em chegarem até eles. O bolo era dividido segundo a importância de cada qual no esquema repressivo, sobrando algum até para os carcereiros…
Com a derrota da luta armada, o ditador Ernesto Geisel pretendia ir desmontando aos poucos esse Estado dentro do Estado. Militar de mentalidade prussiana, não admitia a existência de um poder paralelo envergonhando a farda.
Ora, os rapinantes haviam se acostumado com um padrão de vida muito superior ao que lhe possibilitava seus soldos e já não conseguiam mais viver sem a rapina – tanto que a notória equipe de torturadores da PE da Vila Militar do RJ envolveu-se com contrabandistas em 1974 e acabou sendo presa, interrogada… e torturada, provando um pouco do próprio veneno.
Então, para atrapalhar a distensão lenta, gradual e progressiva de Geisel, que incluía a desmontagem do aparelho repressivo de exceção, passaram a efetuar provocações que, esperavam eles, fariam a esquerda reagir, permitindo-lhes alegar que continuavam sendo úteis e necessários. Valia tudo para despertarem o fantasma do comunismo, que lhes era tão vantajo$o.
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Sacerdotes de três confissões oficiaram a missa de 7º dia de Herzog, na Catedral da Sé |
Assim, uma base do PCB que fora formada na ECA/USP e se expandira com o ingresso de seus membros na carreira de jornalistas – continuando, entretanto, bem longe de representarem uma ameaça real ao regime – acabou sendo escolhida como um dos principais alvos de uma suspeitíssima escalada de prisões de peixes pequenos, desencadeada em outubro de 1975.
Embora estivesse havia poucos meses lecionando na ECA, Herzog foi incluído no pacote dos provocadores, talvez porque era um professor muito querido na USP desde que nela se formara em Filosofia no ano de 1959. Supunham que, prendendo-o, os universitários protestariam.
Então de repente, não mais que de repente, a repressão se deu conta de que a ditadura começaria a ser derrubada pela insidiosa infiltração subversiva no Departamento de Jornalismo da TV Cultura, que era dirigido por Herzog e tinha mísero 1% de audiência em São Paulo…
Vlado, coitado, não levou em conta o arranca-rabos nos bastidores do regime e seguiu confiante para o matadouro. Até pela estima que lhe devotava o governador paulista Paulo Egydio Martins, estava certo de que em seu caso não abririam a caixa de ferramentas.
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Boilesen, notório empresário financiador da repressão |
COMO OCORRIAM OS DITOS ACIDENTES DE TRABALHO – Aqui falo por experiência própria: ao recebermos choques elétricos não conseguíamos respirar e nos sentíamos como se estivéssemos morrendo. Mas os torturadores, quando não queriam nos matar, cessavam a descarga antes de enfartarmos.
No entanto, baseavam-se numa média de tempo que o supliciado fosse capaz de suportar; quando, contudo, ele possuía alguma comorbidade, eventualmente expirava antes.
Os torturadores, ao excederem a dose causando a morte de Herzog, despertaram a indignação mundial – para o que também concorreu a ascendência judaica da vítima, repetindo em escala ampliada o que já sucedera no final de 1969, quando da morte sob torturas de Chael Charles Schreier, militante da VAR-Palmares. Judeus são muito sensíveis à morte dos seus em circunstâncias semelhantes às do Holocausto.
Geisel e seu fiel escudeiro Hugo de Abreu aproveitaram a chance para minarem o DOI-Codi, esperando que, assim, sua vindoura extinção não despertasse resistências na caserna. Portanto, Geisel deu ao II Exército o ultimato de que não poderia deixar uma morte inconveniente como aquela se repetir.
Previsivelmente, antes que se completassem três meses, os torturadores erraram a mão de novo, despachando para o túmulo o metalúrgico Manuel Fiel Filho, também do PCB. Com isto, forneceram a Geisel motivo suficiente para exonerar o comandante do II Exército Ednardo D’Ávila Melo e desmontar o DOI-Codi, robustecendo seu projeto de abertura política.
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Mortos pela ditadura militar: os zumbis ultradireitistas ainda pregam a volta de tais horrores |
Por último, devem ser lembrados:
- o cansaço dos cidadãos que viviam sob terror policial desde 1969 e já não aguentavam mais o clima de autoritarismo e intolerância, mesmo porque, visivelmente, não havia mais uma ameaça verdadeira ao regime;
- a resistência dos jornalistas, que afinal se avolumou; e
- a coragem dos líderes religiosos de três confissões, que correram todos os riscos ao realizarem na Catedral da Sé uma missa ecumênica pela alma de Herzog, implicitamente desmentindo a versão da ditadura segundo a qual ele se suicidara.
Nem assim as tentativas de inviabilizar a redemocratização do Brasil cessaram de todo. Em 1976 houve atentados a bomba contra o semanário Opinião, a ABI, a OAB e a residência do empresário de comunicações Roberto Marinho, além do sequestro e espancamento do bispo de Nova Iguaçu e da chacina dos militantes na gráfica do PCdoB.
Em 1979/81, a ação dos grupos paramilitares de direita se intensificou, com novos ataques a entidades e cidadãos ilustres (como o jurista Dalmo de Abreu Dalari) e até os bizarros incêndios de bancas de jornais nas quais eram vendidas publicações alternativas.
Até que, em 30 de abril de 1981, o feitiço virou contra o feiticeiro: a bomba explodiu no colo do terrorista fardado que pretendia provocar pânico de consequências imprevisíveis durante em show musical no Riocentro. A maré mudou e a redemocratização foi consolidada.
(por Celso Lungaretti)