A cultura de memes e o meio digital andam abraçados há anos e são, até o momento, inseparáveis. A extrema-direita, claro, criou suas formas de linguagem e, rastejando pelo submundo da internet, alcançou o mainstream com seus recrutas.
Por Yuri Ferreira – de Brasília
Nas últimas semanas, vimos um aumento considerável de ataques armados a escolas no Brasil. Jovens de extrema-direita, motivados pelo ódio, ingressam em ambientes escolares, tentam matar ou ferir inimigos e, por fim, perdem a vida ou vão presos.
Não é possível, sob senso algum, achar isso engraçado. Ou será que, ao aplicar uma camada de ironia à tragédia, ela se torna mais palatável? Será que a tragédia que cresce no Brasil tem tons cômicos?
A cultura de memes e o meio digital andam abraçados há anos e são, até o momento, inseparáveis. A extrema-direita, claro, criou suas formas de linguagem e, rastejando pelo submundo da internet, alcançou o mainstream com seus recrutas.
Eles acham engraçado
A história surge a partir de uma conversa com uma usuária do Discord. Em anonimato, a adolescente de 17 anos de idade me relatou como funcionam as invasões com ataques de ódio em servidores da plataforma.
"Geralmente, eles entram em servidores que youtubers deixam disponíveis para interagir com inscritos. Como não tem muita moderação de madrugada, eles mandavam um monte de coisa no chat", explicou.
Os ataques aos servidores no Discord são feitos para identificar usuários que gostam de conteúdo extremo.
“Mostrando coisas assim, tipo vídeos de suicídio, pessoas apanhando, pedofilia, racismo. É sempre assim. E aí eles se juntavam com quem tinha esse humor em comum”, explicou.
Eles adicionam pessoas a esses grupos com conteúdo extremo e se unem no propósito. "Isso foi piorando conforme a pandemia. Eles ficam o dia inteiro tentando ir mais fundo dentro do assunto, e, quando alguém tentava dizer que era errado esse tipo de coisa, eles começavam a brigar e ficar super-agressivos", disse a usuária.
Humor e extrema-direita
Durante uma visita aos chats de extrema-direita no Discord, encontramos diversos termos antissemitas, racistas, lgbtfóbicos, machistas, além de referências à negação do holocausto, ao neonazismo, automutilação e suicídio. Além, é claro, de muita coisa gore.
O problema é que tudo parecia uma piada. Ou parecia ser lido como piada pelos membros dos grupos. E isso é método, segundo Myllena Araújo, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSCar, especialista na relação entre ‘trollagem’ e política.
“Uma característica da extrema-direita é o humor com essas marcas de discurso de ódio direcionado às minorias sociais”, explica Araújo à Fórum.
“É um humor que tem esse objetivo de causar uma ambiguidade. O que eu tô falando é brincadeira ou não. A intenção é sempre causar essa dúvida no interlocutor. E é através do humor que eles criam condições de possibilidade de disseminar o discurso de ódio”, completa.
Bolsonaro, por exemplo, usou o termo ‘politicamente correto’ em 18 ocasiões apenas no Twitter para criticar alguma forma de controle contra discursos de ódio.
“A gente vê muito que o uso desse humor foi feito como uma forma de combate ao politicamente correto, a partir desse véu de inocuidade humorística, para poder propagar discursos preconceituosos e autoritários”, explica Myllena.
As raízes
Os chans existem desde 2003. No Brasil, estão aí desde 2010, pelo menos, e sempre foram um antro de neonazis.
– Esse recrutamento de jovens para esses grupos ideológicos se deu a partir de fóruns da deepweb. Mas agora, esse recrutamento está sendo feito pelas redes sociais do mainstream, como Twitter, Facebook e Instagram. Esses discursos que antes eram apenas restritos às pessoas que estavam nesse submundo estão alcançando um espaço público – explica Myllena.
Porém, justamente durante as eleições de 2018, quando Bolsonaro saiu vitorioso, que esse processo se intensificou.
O papel do humor dentro da extrema-direita tornou-se mais viral a partir deste momento histórico.
– A gente percebe uma regularidade humorística muito mais acentuada a partir da eleição de 2018. O uso desse humor inflamatório começa com muita visibilidade na política a partir da eleição de Trump em 2016, a partir dessa ascensão da direita alternativa nos EUA – afirma Myllena.
As soluções
A nossa fonte decidiu sair do Discord em 2022, após perceber a plataforma como um ambiente extremamente agressivo. Quando andamos por lá, não vimos um ambiente muito diferente do relatado.
A plataforma é sede para grupos neonazis pelo menos desde 2016 e já foi alvo de diversos artigos na mídia sobre o tema, em especial após os atentados de Charlottesville, em 2017.
Observando o Disboard, plataforma que mostra servidores abertos na rede social, o que não faltam são células fascistas, supremacistas e de incels dentro do aplicativo. Os grupos, claro, embebidos de ironia e humor.
Mesmo após ser conectada com casos de ataques em escolas no Brasil, a rede social não se pronunciou oficialmente ou anunciou alguma mudança em sua política. Na reunião do Ministério de Justiça e Segurança Pública sobre o tema, não esteve presente.
Para Myllena, a solução está na regulação das redes sociais. “Eu acredito que atualmente a regulação das redes sociais precisa ser feita para o humor, que também pode propagar discurso de ódio”, diz.
Em nota à Fórum, o Discord disse que tem "uma política de tolerância zero contra ódio ou extremismo violento e agimos quando tomamos conhecimento disso, incluindo banir usuários, desligar servidores e entrar em contato com as autoridades quando apropriado"
"Uma das maiores prioridades do Discord é garantir uma experiência segura para nossas comunidades, e estamos investindo continuamente em nossos recursos de segurança. Nossa dedicada equipe de segurança usa uma combinação de ferramentas proativas e reativas para manter fora do serviço atividades que violem nossas políticas, incluindo tecnologia avançada, como modelos de aprendizado de máquina, capacitando e equipando moderadores da comunidade para cumprir nossas políticas e fornecendo mecanismos de denúncia em serviço. Eles também tomam proativamente medidas adicionais com base em tendências de plataforma mais amplas ou na inteligência que recebem", completou a empresa.
Yuri Ferreira
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