A mídia se indigna, o fogo devora na Cinemateca parte do maior acervo audiovisual da América do Sul com 350 mil rolos de filmes e 1 milhão de documentos — e, na página seguinte, as fotos do presidente com seu riso de escárnio.
Por Norma Couri - de São Paulo
Ao lado da líder nazista, na liderança das motociatas, enquanto a floresta incendeia e o áudio da FUNAI estimula “meter fogo” nos indígenas da Amazônia—lá vem a imagem assustadora do riso mefistofelesco de Bolsonaro.
A imprensa noticia o casamento de conveniência entre o presidente e Ciro Nogueira — e a imagem sem desculpa ou explicação replica de lado a lado do riso de Bolsonaro, seus dentes à mostra
Demorou, sim, mas veio uma reação de peso do TSE, STF, de Luis Fux cancelando a reunião e rompendo relações com o governo — mas, acolchoado ao lado de seu procurador-particular Augusto Aras, e seu terrivelmente evangélico ministro André Mendonça, a imagem, em todas as mídias, do riso de desafio “dele”, nos enfrentando.
Nunca a mídia falou tanto em risco, de golpe, da eleição em 2022 sob ameaça, da suposta indicação de um dos Zeros para concorrer caso “ele” fique impedido — mas, no lugar do pronunciamento de estadista, um palavrão, um safanão, uma gozação, uma gargalhada.
Nunca um manifesto saltou de 250 assinantes para 7 mil em tão pouco tempo como este “Eleições Serão Respeitadas” da semana passada, incluindo ex-ministros, banqueiros, a nata da economia, da cultura, a fina flor do nosso Brasil. Como se não fosse o alvo de tudo, Bolsonaro se esbalda de rir.
Que ele está armando nós sabemos, com quem ele está falando, também sabemos.
Mas Bolsonaro ri de quê?
Da imprensa, das instituições, das universidades, dos leitores, do judiciário, da democracia. Bolsonaro ri do Brasil.
A desertificação de tudo o que construímos avança, estamos encolhendo diante do mundo. Tudo o que cresce no Brasil são os anões cívicos, as figuras pinçadas do mesmo universo paralelo de onde ressurgiu Bolsonaro, feito um monstro do Lago Ness — o nosso, longe da Escócia, emergiu e ficou.
Vingou nestas Olimpíadas tudo o que Bolsonaro ridicularizou e tentou afogar nesses dois anos e meio de graçolas e ofensas – as mulheres, as negras, o grupo LGBTQIA+, o baile de favela. E o temor é que ele faça como Médici na Copa de 70, garimpe votos daí, já que está tateando um Ato Institucional varrendo o judiciário como aconteceu na véspera dos Atos Institucionais da ditadura. Do que gostamos, ele não gosta. O nosso Brasil vibra com os ouros, pratas e bronzes da periferia e da negritude, com o beijo não binário, com a coragem das mulheres que revelam seu lado fraco e a alma doída. Mas o Brasil que aplaude Bolsonaro gosta de armas, desta fortaleza sem sentimentos (“vai morrer? Paciência”), deste riso sobre cadáveres.
Há duas imprensas, a que ele despreza e a das fake news, que podem varrer sua chapa do mapa com o processo do TSE. Ele só ameaça. E ri.
O troco que a imprensa dá tem diversas formas. Mas a melhor tem sido com imagens, os cartoons da revista piauí de agosto como os quatro Bolsonaros no “espaço reservado para propaganda eleitoral” e legendas como “em rio que tem presidente sociopata, jacaré nada de costas”. Lá está Bolsonaro entre figuras medievais com a legenda “no meio do Centrão”. E o retrato do Congresso representado pela metamorfose de Arthur Lira eleito para presidir a Câmara dos Deputados com apoio de ruralistas e bolsonaristas: “qualquer utopia de equilíbrio foi sepultada”.
O cartaz de evento “com muita chance de ser aprovado na Funarte“ é um festival de jazz e canto gregoriano com dois anjinhos segurando o papiro “com Deus pelo fascismo e contra a democracia”. Um poste de energia elétrica com bandeirinhas vermelhas a la Volpi simboliza o apagão energético negado pelo governo. A insistência do voto impresso, imagem do retrocesso, traz Ricardo Salles ao telefone dizendo “estou sem celular, agora só uso o fixo” e a legenda “a vanguarda do atraso”. O ex-ministro das boiadas aparece mais uma vez na natureza morta representada por duas cabeças, uma caveira e outra de Salles.
A piauí deitou e rolou no tema das vacinas e da Covid. Van Gogh aparece em autorretrato usando a máscara na orelha (cortada). Jesus, de polegar para cima, pede um “like” para o estado laico. Um Mondrian se adapta para equilibrar em quadrados a popularidade (do presidente) e as mortes (por Covid sem vacina). Um croquis de Niemeyer representando o Congresso, a catedral e o ministério, inova com uma “piscina para negociação de vacinas”. A história em quadrinhos de um quadrinho só traz a legenda, “quando a médica entrou no quarto (do doente deitado) a verga de Oswaldo já estava rija e imponente como uma torre da Fiocruz”. Sobre uma vacina, cortada da cena, um burrico exclama “no quiero ser caimán, prefiro ser asno” (não quero ser jacaré, prefiro ser burro). Nos quadrinhos, um general mostra a mão estraçalhada a um médico perguntando “é grave, doutor?”, e o médico “general, isto é uma reação alérgica causada pelo contato direto com o saco do presidente… eu também peguei isto! Quero ser o próximo ministro da saúde e estou puxando o saco dele direto”.
Está salpicado de sangue o cartoon “chão do gabinete do coronel Ustra”, elevado por Bolsonaro a Marechal. À propos de Picasso, uma Guernica estilizada goza “o gado e o Mito”. À propos de René Magritte, piauí desenha um homem genérico com a inscrição “ceci n’est pas un président”, isto não é um presidente. A obra máxima de Tarsila do Amaral acaba de ser renomeada: “Abolsonaropu”. Na pesquisa DataTrolha, as únicas opções vão de abominável, ruim, péssimo, horroroso e repugnante a escroto. Homenagem a Drummond, “e agora, Jair?/ A festa acabou/ A luz apagou/ O povo sumiu/ E agora, Jair?”. Outro cartoon homenageia Saint-Exupéry com o Pequeno Príncipe na montanha pisoteado por um enorme elefante: “tu te tornarás eternamente responsável pelas merdas que fazes”.
No começo da revista, seção Esquina, um enorme traço de Regina Duarte de mestre cuca. A ex-secretária especial da Cultura por dois meses e quinze dias reaparece como “Mestre da Canjica” pelas lives de culinária caipira que bombaram no seu Instagram mais de um ano depois que Bolsonaro resolveu lhe dar um presente: a presidência da Cinemateca. João Batista Jr. conta que, no dia 29 de julho, enquanto Regina postava um vídeo dentro de uma banheira de hidromassagem na gélida cidade gaúcha de Gramado, um galpão da Cinemateca pegou fogo consumindo quatro toneladas de documentação sobre políticas públicas de cinema, além de fotografias e cópias de filmes. Regina é o símbolo de quem se iludiu com o riso do Bolsonaro. (Publicado originalmente no Observatório da Imprensa, com o título A mídia em imagens)Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Direto da Redaçãoé um fórum de debates publicado no Correio do Brasil pelo jornalistaRui Martins.