Grandes dramas e dilemas vive hoje o jornalismo. Há situações inusitadas também e que nunca foram imaginadas especialmente nas questões da ética, ou melhor, da deontologia jornalística, que é o termo mais adequado quando se trata de profissões. A partir das novas tecnologias de informação, um tema inquietante é a própria definição do que é ou não jornalismo, já que as mídias sociais, blogues corporativos, canais de Youtube e empresas não costumam diferir precisamente as fronteiras de cada função e especificidades.
Por Paulo Sérgio Pires
Por não ter limites firmes delimitados por normas jurídicas e éticas, possivelmente as fake news proliferaram com mais facilidade dentro do cyber espaço e ressoaram de modo amplificado na própria Opinião Pública.
Como se pode notar com facilidade, a chamada ‘ética jornalística’ há anos vem sendo reivindicada repetidamente em nosso métier, no entanto, pouca coisa ou nada é feito concretamente a respeito da sua aplicação. Lamentavelmente, o jornalismo vive um momento de fraqueza, com enormes dificuldades de subsistência. Quem custeia o veículo fala mais alto, sendo seus interesses muitas vezes bem além de dar sustento a um bom produto editorial, ou seja, proporcionar suporte para o veículo correto, honesto e profissional divulgar sua marca ao lado de informações verdadeiras. O problema como alguns alertam é que em diversas circunstâncias “onde o dinheiro fala, a verdade se cala”.
Naturezas diversas
O jornalista profissional segue uma técnica e um código de conduta, que foram tipificados na literatura e na academia há séculos. Enquanto isso as novas ocupações da web ainda estão se formatando e talvez por isso mesmo não estejam preocupadas, por exemplo, com o histórico paradigma da separação ‘igreja-estado’, ou seja, a delimitação clara entre informação e publicidade, tão citada como essencial para a mídia jornalística. O termo ‘igreja-estado’ remete à divisão entre essas instituições e estabelece que elas devam ser mantidas separadas e independentes para que ambos cumpram adequadamente seu papel na sociedade. Em outros tempos elas se misturavam e geravam problemas infindáveis.
No novo mundo digital há, porém, uma forte corrente para que se misture propaganda comercial com informação genuína. Os novos profissionais midiáticos digitais são disruptivos e tendem a querer arrebentar com todos os paradigmas tradicionalmente estabelecidos. Hoje possivelmente a maior preocupação dos influenciadores digitais seja não cometer penalidades técnicas estabelecidas pelas bigtechs para seu negócio não ficar desmonetizado. A grande questão, porém, para os especialistas é que existe uma infinidade de casos sem separações distintas, com a publicidade se misturando camufladamente com informação e entretenimento em blogues, comunidades virtuais e canais de Youtube.
O novo mundo digital é uma vastidão e os influenciadores trabalham com diversidade na produção de conteúdo, passando entre outros temas pelo humorismo, a consultoria informal, o ensino e treinamento, tutoriais, e inclusive o jornalismo com variados graus de qualidade. Mas o fato é que numerosos influencers e bloguers se sentem e se autodefinem ‘jornalistas’, mesmo não produzindo concretamente jornalismo, simplesmente por apreciarem a denominação e o que vem de positivo a reboque.
O ponto fundamental na deontologia jornalística no Brasil é que enquanto não houver um órgão independente do âmbito sindical (que teoricamente cuida ou cuidou da ética) não evoluiremos. A proposta seria a construção de um modelo de autorregulamentação semelhante ao do meio publicitário, o Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação – sic – grafia histórica). O jornalismo brasileiro poderia se inspirar nele para o grande desafio que se materializa a todo o momento, isto é, apresentar fatos verídicos e delimitar fronteiras com interesses comerciais.
Um dos problemas essenciais atualmente nessa problemática é tipificar nitidamente o que é a profissão do jornalista em relação aos similares do conteúdo digital, um termo altamente genérico e virtual (aqui no sentido denotativo).
Independentemente da regulamentação profissional, é preciso definir com mais clareza quem é afinal jornalista, blogueiro/bloguer, influenciador digital, creator, vloguer, conteudista/produtor de conteúdo, community manager/gestor de mídias sociais, ‘otimizador’ e outros profissionais afins. E deixar claro quem faz o que. Isso, no entanto, será complicado, porque mesmo hoje as legislações em vigor que já dispõem sobre as atividades de jornalista e radialista ainda apresentam sobreposições entre elas, que também geram algumas confusões e dúvidas.
Há informes que no Brasil existam mais de milhões de digital influencers no momento. Dentro de um espectro tão elástico é difícil saber com segurança quem produz jornalismo ético e quem faz ‘parajornalismo’ ou conteúdo com forte interesse comercial e às vezes enganoso. O fato concreto é que as plataformas ou gadgets são as mesmas, mas as narrativas são diferentes.
Muito importantes são os dispositivos para disciplinar a atividade, no entanto, deve ser difícil fiscalizar e enquadrar infratores com esse emaranhado de linguagens e multiplicidade de produtos midiáticos e interesses. Sou seguidor de alguns influenciadores, mas são poucos os que se interessam em deixar absolutamente claro, que certas mensagens veiculadas têm interesse comercial por trás. Por outro lado, tenho a impressão que os jornalistas-influenciadores trabalham mais com a monetização do negócio, pago pelo motor do busca, talvez até por seguirem a velha cartilha com delimitações de conduta.
O Conar inclusive disciplinou em 2021 a publicidade no marketing de conteúdo com seu Guia de Publicidade por Influenciadores Digitais. A publicação apresenta orientações para aplicação e regras do código de autorregulamentação publicitária ao conteúdo comercial dos canais de Youtube. Determina, por exemplo, no caso de quando não estiver evidente no contexto, que é necessária a menção explícita da identificação publicitária, como forma de assegurar o cumprimento deste princípio, por meio do uso das expressões: ‘publicidade’, ‘publi’, ‘publipost’ ou outra equivalente.
No próprio Código de Ética do Conar, o seu artigo 28º determina que o “anúncio deve ser claramente distinguido como tal, seja qual for a sua forma ou meio de veiculação”. E no seu Artigo 30º complementa dispondo que “a peça jornalística sob a forma de reportagem, artigo, nota, texto-legenda ou qualquer outra que se veicule mediante pagamento, deve ser apropriadamente identificada para que se distinga das matérias editoriais e não confunda o Consumidor”.
Segundo informações da Academia Influency.me, a Associação Brasileira dos Agentes Digitais (Abradi) criou o Código de Conduta para Agências Digitais na Contratação de Influenciadores, que segue as orientações da Federal Trade Commision (FTC) dos Estados Unidos. O documento estabelece regras para as agências de marketing digital seguirem tais como:
- Transparência na identificação do conteúdo patrocinado ou influenciado;
- Transmissão de mensagens pelo influenciador que estejam em harmonia com o posicionamento e valores da marca;
- Elaboração de contrato entre marca e influenciadores, reforçando a ideia de que influenciador já é visto como uma atividade profissional no Brasil;
- Mensuração dos resultados com métricas quantitativas e qualitativas:
- Seleção de influenciadores a partir de critérios técnicos, que inclui reputação e linguagem do influenciador;
- Etc.
Na complexidade cibernética, há ainda o SEO (Search Engine Optimization) ou a Otimização para Motores de Busca, técnica digital cuja obsessão é posicionar a marca no primeiro lugar da primeira página do Google, buscador que detém o impressionante percentual de 98,88% de participação no seu mercado. Muito mais do que um site, blog ou portal levar informação com a narrativa jornalística correta, precisa e honesta, o que importa agora para muitos é ser o campeão nas buscas, ainda que os especialistas digitais argumentem que o importante também é ter um conteúdo com relevância, autoridade e principalmente links com referências de terceiros, que também sejam respeitados. Hoje em dia, ficar em primeiro no ranking das buscas é o maior objetivo não apenas de blogues, mas de até grandes portais de notícias. Este propósito é para melhorar as inserções de publicidade.
A partir do advento do SEO, o texto jornalístico tradicional, pelo qual se procurava levar ao internauta informações bem coletadas, contadas ou rigorosamente explicadas, foi trocado por uma redação direcionada à busca de palavras-chaves e inclusão no conteúdo de expedientes como enumerações em tópicos, colocação de letras em negritos e itálico, posicionamento de hiperlinks e principalmente referenciação de outros sites afins.
Aqui continuam existindo artimanhas aéticas, chamadas no setor de black hats, mas o Google neste caso tem um algoritmo incrivelmente competente em encontrar infratores. E ao que tudo indica a Otimização para Motores de Busca não confronta diretamente com a deontologia jornalística, afronta apenas a boa narrativa jornalística. Os profissionais que realizam a tarefa de tentar chegar em primeiro lugar, em sua maior parte, são redatores que ‘cozinham’ ou parafraseiam material já publicado na web. Algumas pautas são mais jornalísticas, outras mais comerciais e vendedoras.
Sanções profissionais
Reformulado algumas vezes, o Código de Ética dos Jornalistas Profissionais está em vigor há muitas décadas, porém concretamente nos pouquíssimos processos éticos abertos nos sindicatos de jornalistas (os quais são encabeçados pela Fenaj) são raras as sanções de fato aplicadas aos jornalistas, ou para ser mais direto, na prática são pouco comuns os casos em que vão a julgamento ou sofram penalidades mais severas. Vale ressaltar que a punição ética/deontológica mais rigorosa é a expulsão do quadro sindical. Portanto, se o ‘coleguinha’ transgressor não for sindicalizado ficará automaticamente imune de ser jubilado da organização. E sem uma pena, que pena…
Consequentemente, esse sistema é totalmente ineficaz e já deveria ter sido substituído há tempos por algo mais avançado, e com mais rigidez e responsabilidade social.
Pelo aspecto da legislação, que vai além da ‘ética’, no caso da Lei de Imprensa, apesar de derrubada e sua inspiração autoritária, continha bons artigos no seu escopo, como o sigilo e proteção da fonte, retratação e direito de reposta, e outros aspectos positivos quanto à responsabilidade autoral.
Talvez uma nova lei para a imprensa ou de comunicação jornalística devesse ser repensada e analisada com mais profundidade, fazendo distinções e clareando pontos obscuros, mas principalmente assegurando a liberdade de pensamento e expressão, mas também sem iludir o receptor com viés comercial em certas narrativas. É preciso deixar claro para a Opinião Pública de quem faz o que exatamente na mídia para evidenciar os respectivos interesses. Propaganda sempre será propaganda, informação jornalística sempre será informação jornalística, qualquer que seja a forma. Já a regulação das bigtechs é outro denso capítulo à parte, que deve ser pensado imediatamente para coibir mais abusos éticos e legais de outros comunicadores digitais, e fechar o circuito da ética e da justiça no ciberespaço…. (Publicado no Observatório da Imprensa)
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Paulo Sérgio Pires é jornalista, publicitário e professor de Comunicação. É pós-graduado e mestre em Comunicação pela USP, onde foi pesquisador-bolsista. Foi repórter do DCI e Metrô News, e colaborou com a Folha de S.Paulo, Agência Folha, Diário do Comércio, revistas Man’s Health e Querida, além de diversas publicações especializadas e técnicas. Foi assessor de imprensa de órgãos públicos e de companhias brasileiras e internacionais. Lecionou em três universidades e duas IES.