Com estados norte-americanos dificultando realização do aborto, ativistas pró-vida se organizam para batalhas judiciais e para ajudar mulheres que, mesmo assim, querem interromper a gestação por conta própria.
Por Redação, com DW - de Washington
O cenário não poderia ser mais inocente: uma tranquila sala de reuniões numa biblioteca em Washington. Naquela noite de semana, adolescentes estão distribuídos em grupos de estudo.
A proporção de mulheres para homens é de 25 para um, e os panfletos que seguram nas mãos dizem: informações sobre como realizar um aborto sem médico, usando uma pílula chamada Misoprostol.
O medicamento é mais frequentemente usado para o tratamento de úlceras – mas em muitos países onde o aborto é ilegal, trata-se também de uma droga que as mulheres procuram para realizar o procedimento elas mesmas.
Agora com restrições ao aborto se espalhando nos estados do sul e do centro-oeste dos EUA e uma recém-conservadora Suprema Corte que pode vir a derrubar a decisão que garantiu o direito constitucional ao aborto em todo o país em 1973, reuniões informativas como naquela biblioteca em Washington parecem ser a mais nova tentativa de proteger a autonomia corporal.
– Eduque-se sobre como interromper com segurança uma gravidez – diz Erin Matson à plateia, com uma atitude de ativista na voz. Logo se tem a sensação de que a codiretora da Reproaction, um grupo que visa aumentar o acesso ao aborto, tem que defender sua argumentação. "A realidade da situação é que as pessoas sempre têm e sempre encontrarão uma forma de interromper sua gravidez."
No passado, isso implicou visitas perigosas a aborteiros clandestinos ou mulheres recorrendo a instrumentos horríveis como cabides. No Alabama, onde o acesso ao aborto tem diminuído há anos, um clínico conta que cuidou recentemente de uma jovem tão desesperada que engoliu comprimidos de água sanitária para induzir o aborto.
São casos como esses que mobilizaram os palestrantes – consultores políticos, gestores de fundos em prol do aborto e assistentes sociais de jovens – a compartilhar informações sobre o que eles consideram serem opções mais seguras para o aborto autogerido antes de 12 semanas, usando procedimentos da Organização Mundial de Saúde.
Resistência online
Como muitas outras coisas que enfrentam proibição, a internet também se tornou um lar para a resistência pró-escolha. Na rede social Reddit se pode ver o restabelecimento de uma "rede de tias", um movimento clandestino de mulheres ajudando outras mulheres a conseguir abortos através das fronteiras estaduais.
"Eu, sua prima/melhor amiga Andreya, gostaria de ter vindo para uma visita aqui no bom e velho Nebraska/Oeste de Iowa! Você é bem-vinda para ficar aqui o tempo que necessitar e eu lhe darei transporte para qualquer lugar que precisar/quiser ir", lê-se numa postagem.
A mensagem subentendida é que a usuária do Reddit está oferecendo sua casa como base para as mulheres ficarem se tiverem que viajar para fora do estado em busca de aborto. A postagem também oferece o envio de um "cartão de aniversário" contendo comprimidos como o Misoprostol.
No entanto, o renascimento online da chamada "rede de tias" não é saudado por todos que trabalham sob a bandeira do movimento pró-escolha, já que alguns ativistas levantam preocupações sobre o surgimento de novos e desconhecidos ramos, quando já existem estruturas bem organizadas, como os fundos de aborto.
– Não é algo que uma pessoa consegue fazer sozinha. Somos mais fortes quando trabalhamos juntos para construir poder coletivo e conectividade – afirma Lindsay Rodriguez, da Rede Nacional de Fundos de Aborto (NNAF) dos EUA.
"A realidade é que, para a maioria das comunidades, há pessoas que já estão cientes dessas injustiças há algum tempo. Estamos preocupadas que a duplicação de esforços, que já são subfinanciados, tornará mais difícil a busca de aborto."
Muitos desses fundos ressaltam que, apesar de o coletivo das "tias" hospedar as mulheres, ele não cobre o custo do procedimento em si. Atualmente, esses fundos estão empenhados em garantir que as mulheres saibam que o aborto e o financiamento ainda estão disponíveis, apesar da onda de esforços legislativos em todo o país.
"Olá, você ligou para o Fundo Yellowhammer. Embora o governador Ivey tenha assinado a lei HB314, o aborto ainda é legal e está disponível no Alabama. Se você precisar de financiamento para um aborto, por favor, disque 1", é a mensagem eletrônica quando se liga para a organização.
Novos riscos
No entanto, a indignação e as ofertas individuais de assistência prosseguem. "Queridas irmãs. Não podemos fazer nada a respeito da forma como você está sendo tratada em seu estado natal", escreveu no Facebook no mês passado Shelly O'Brien, gerente de um pequeno hotel em Michigan, onde o chamado projeto de lei de batimentos cardíacos (proibição do aborto a partir do momento em que se puder escutar os batimentos cardíacos do feto) também irá à apreciação pelos legisladores do estado. "Mas, se você puder vir a Michigan, nós a apoiaremos com várias noites de hospedagem e transporte de ida e volta de sua consulta."
O'Brien diz que provocou uma Shitstorm nas redes sociais, mas insistiu que sua oferta ainda está valendo. "A única maneira de isso mudar é se as pessoas estiverem dispostas a correr o risco."
Na verdade, parece que as "tias" e as mulheres que consideram praticar o aborto autogerido estão arriscando alguma coisa, a perspectiva de criminalização. "Eu quero dizer uma coisa", enfatiza Erin Matson, dirigindo-se ao grupo reunido na sala da biblioteca em Washington: "Não há nenhum teste sanguíneo que mostre que o Misoprostol tenha sido usado oralmente. O tratamento das complicações é o mesmo tratamento do aborto espontâneo. Você receberá o mesmo padrão de cuidados se falar sobre aborto espontâneo, mas ao falar sobre o aborto, pode correr o risco de ser processada."
Um lembrete semelhante foi impresso num folheto distribuído. "Pelo menos 20 mulheres foram presas por interromperem a gravidez", lê-se no texto. "Se você tiver um aborto espontâneo, mas houver pesquisado no Google sobre o aborto autogerido, poderá ser criminalizada por isso", adverte Brooke Butler, do Fundo do Aborto em Washington. "É para onde estamos indo."