Tem razão o professor João Antônio de Paula, da Universidade Federal de Minas Gerais, ao dizer, em forte prefácio aos “Diários Intermitentes 1937-2002”, de Celso Furtado, que para este grande brasileiro “A lucidez foi uma companheira inseparável”.
Por Paulo Gustavo, de Recife:
Celso Furtado
O apolíneo, malgrado as angústias próprias da juventude, busca seu planejamento existencial: possui um diário, diz ele, “[…] para tentar pensar sistematicamente — isto é, escrever”. O que nos lembra Hannah Arendt quando nos diz que ao escrever o que busca é realmente compreender: “Para mim, o importante é compreender. Para mim, escrever é uma questão de procurar essa compreensão […]”. Para o jovem Furtado, “A pena é um verdadeiro ‘alter ego’”. Mas, por enquanto, aos 24 anos, se lastima da sua “indisciplina mental” e da “consciência do tempo perdido” (!). Mais tarde, os anos de maturidade vão ser como que um avesso de tais percepções: a disciplina mental e o tempo dominado farão desabrochar o seu trabalho.
Datam daquela época de juventude os seus flertes com a literatura de ficção, de resto apenas platônicos flertes. O desejo de ser escritor ia de par com uma percepção cruel da vida e com o conhecimento da melhor literatura. No futuro, esse patrimônio interior seria transformado em lúcida luta por um mundo mais justo e solidário. O economista que viu a diversidade do mundo (bem antes do exílio, diga-se de passagem) não perderá seu pendor narrativo e criador. A cultura literária é uma espécie de estofo à escritura do humanista que vai muito além da economia. Esta, ao que parece, é só um núcleo do qual irradiam seus vastos interesses.
Quanto à política, o que transparece nos “Diários” é o que Nabuco já chamara de política com “p” maiúsculo. Daí o seu quase enfado em vestir uma camisa partidária, a deixar-se levar pelas paixões do momento. Se tudo para o poeta da modernidade, Baudelaire, “se transformava em alegoria”, para Furtado quase tudo é matéria social, mas de um social encarnado na vida concreta, que busca e tenta refugir às abstrações de gabinete — e nisso foi habilmente político. Mas o planejador que foi só se completava com o executor que servia. O apolíneo de fato evitava que sua luz iluminasse o vazio…
A maturidade, como se sabe, compensou as inquietações juvenis: como técnico de excelência, não tardou que ascendesse na administração federal e que por duas vezes fosse ministro, do Planejamento e da Cultura, pastas que foram muito menos setores e nomes burocráticos do que emblemas de sua própria vida. Mas sua grande luta, como assinala Rosa Freire d’Aguiar, foi a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – Sudene. Nessa batalha, assinala Rosa, “Os adversários iam desde os incrédulos e desconfiados opositores de JK até os usineiros e as elites receosas da perda de privilégios e controle de verbas que irrigavam a política nordestina”. No livro “A fantasia desfeita”, bem como em outros momentos de sua vasta obra, ele abordaria com mais detalhes a luta pela criação da Sudene.
Finalmente, é de se registrar (embora sob o risco de redundância) que o nosso apolíneo parece ter unido em si mesmo o homem cosmopolita e o pensador brasileiro ou transbrasileiro. Os “ares do mundo” tão inspiradores quanto bem inspirados em diversos fóruns e universidades estrangeiras deram-lhe o gás que a sua juventude ambicionara. Com isso, pôde deixar um legado de brasileiro preocupado com a sua gente e com o sofrido destino da humanidade. Com estes “Diários”, até então inéditos, temos o privilégio de observar que o poder, malgrado o lodo que o acompanha, pode, se exercido com dignidade e conhecimento, ser a sementeira de um futuro melhor. (Publicado originalmente na revista online Será?, de Recife)
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