Rio de Janeiro, 21 de Novembro de 2024

Instituições denunciam desmonte da área de saúde mental de João Pessoa

Arquivado em:
Quarta, 23 de Agosto de 2023 às 12:24, por: CdB

O caso mais preocupante entre as denúncias é o do CAPS AD III David Capistrano, que desde maio de 2022, permanece sem sede após ter sido interditado pela Defesa Civil. 


Por Redação, com Brasil de Fato - de Brasília


Nos últimos dois anos, profissionais residentes, usuários e coletivos de instituições que lutam em defesa das Redes de Atenção Psicossocial (RAPS) de João Pessoa (PB) têm denunciado inúmeras perseguições, desligamentos de funcionários, precarização das estruturas, descaracterização do objetivo dos centros de atenção (CAPS), fechamento de serviços em residências terapêuticas, superlotação, má conduta com usuários da rede e atrasos na entrega de obras. Tudo isso leva a um questionamento: estaria ocorrendo um desmonte na rede de atenção e cuidado à saúde mental na capital paraibana? 




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Teto do CAPSad III David Capistrano, em João Pessoa, após desabar durante fortes chuvas em 2022

O caso mais preocupante entre as denúncias é o do CAPS AD III David Capistrano, que desde maio de 2022, permanece sem sede após ter sido interditado pela Defesa Civil. Desde então, esse serviço vem funcionando em uma Policlínica que, segundo os coletivos, não possui estrutura para comportá-lo, além de ter perdido o caráter de atendimento 24h, preconizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

O coletivo de entidades em defesa da Rede de Atenção Psicossocial de João Pessoa é bastante diverso e integrado pelos seguintes grupos e instituições: Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania da UFPB; Conselho Regional de Psicologia da 13ª Região; Movimento de Usuários e Familiares Amigos da RAPS (MUFARAPS/PB); Projeto Apóia RAPS-UFPB; Residência Multiprofissional em Saúde Mental da UFPB; Coletivo de Residentes em Saúde Mental da UFPB; Centro Acadêmico de Psicologia Neusa Santos da UFPB; Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da UFPB; Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) na Paraíba (ANPSINEP-PB); Articulação de Mulheres do Brasil (AMB-PB); e Movimento de Mulheres Negras na Paraíba.



Conferência municipal de saúde mental, demissões e traferências


Foi numa sexta-feira do mês de maio de 2022, às 16h30, que o psicólogo e até então coordenador de Saúde Mental de João Pessoa, Vinícius Suares, recebeu o comunicado de que estava sendo desligado dos trabalhos da coordenação, sem nenhuma justificava. Ele conta que solicitou verbal e formalmente os motivos da decisão, mas nunca obteve respostas. Vinicius acredita que foram vários elementos que culminaram na sua demissão. Um deles seria o fato de defender de forma ativa os preceitos da Reforma Psiquiátrica pautados pela Luta Antimanicomial.

– Esse ponto começou a gerar incômodos porque eu não aceitava ordens de fazer as coisas de qualquer jeito. Sempre questionei tudo amplamente. Por exemplo: durante o aumento dos casos de síndromes gripais em crianças no início do ano de 2022, a SMS/JP chegou a dialogar e quis pactuar com o governo do estado que os leitos de saúde mental para crianças e adolescentes fossem realocados do Hospital Municipal do Valentina Figueiredo para o Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira; me posicionei contra, enquanto coordenador, que não existia indicação técnica para referência de urgência em saúde mental infanto-juvenil para que esses leitos fossem alocados num hospital psiquiátrico – relata.

Ainda na condição de coordenador, Vinicius conta que, no início de 2022, ele e outros profissionais começaram a organizar as Conferências Distritais de Saúde Mental para que fossem construídas propostas e eleições de delegados para a Conferência Municipal de Saúde Mental, que iria acontecer em abril do mesmo ano. Como princípio da Reforma Psiquiátrica, participaram dessas reuniões os usuários/as e seus familiares, trabalhadores/as da saúde mental, gestores e profissionais residentes. O psicólogo conta que foi acusado por várias vezes de promover “politicagem” com essas reuniões. Uma das acusações era seu alinhamento e posicionamento político em relação à eleição presidencial de 2022.

– Alguns setores começaram a dizer que eu estava usando o espaço para fazer o L (risos) e promover militância. Ora, pessoas de todo segmento precisam ter autonomia para se posicionar politicamente, inclusive é o que prevê a Luta Antimanicomial; mas a questão passava também por um certo discurso capacitista de que usuários dos serviços de saúde mental ‘não conseguem’ pensar politicamente, e eles estavam ativamente em todas as reuniões – afirma. 


A Conferência Municipal de Saúde Mental de João Pessoa, que aconteceu em abril de 2022, gerou muita mobilização e participação social, o que, segundo Vinicius, acabou “causando incômodo” para setores mais conservadores da gestão. Já na segunda etapa da conferência, que aconteceu em maio de 2022, a Guarda Municipal foi acionada para ficar no local onde estavam ocorrendo os debates, o que acabou causando grande tumulto. Vinicius conta que, na ocasião, advogados e a defensoria pública precisaram intervir no caso.

– Isso aconteceu antes que iniciássemos os trabalhos, os debates, e foi uma grande confusão, porque a Guarda estava ali para intimidar algumas pessoas, e não era o caso da presença desse tipo de profissional, que só é acionado quando está acontecendo algum dano ao patrimônio. Diante da confusão, a defensoria pública precisou intervir para que a situação fosse resolvida e a Guarda Municipal deixasse o espaço – explica.

Após a demissão de Vinicius Suares, outros profissionais também foram desligados. Este ano, a psicóloga Hildevânia Macêdo, efetiva desde 2012 da Prefeitura de João Pessoa, recebeu um aviso de transferência do CAPS II Caminhar para a Policlínica da Praia. Ela conta que isso aconteceu após sua participação ativa na mobilização para a Conferência Municipal de Saúde de 2023. 


– Fui transferida logo após participar das mobilizações na Conferência de Saúde deste ano, em março de 2023. Estive junto com outros trabalhadores da saúde mental municipal, debatendo com o coletivo da luta antimanicomial e denunciando os desmontes das RAPS em João Pessoa – afirma a psicóloga. 



O que são Raps e como funcionam na capital paraibana


A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) tem o objetivo de acolher e acompanhar as pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas no âmbito do SUS. Em João Pessoa, ela teve início em 2011, através da portaria GM/MS Nº 3088 de 23 de dezembro.

Atualmente, de acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES), as RAPS de João Pessoa funciona com:  


Pronto Atendimento em Saúde Mental (PASM); 


Espaço com leitos para Urgências no Hospital Municipal Infantil do Valentina;


Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): CAPSi Infanto-Juvenil Cirandar; CAPS AD III David Capistrano; CAPS III Gutemberg Botelho; CAPS III Caminhar


Residências Terapêuticas (RT)


Funcionam, ainda, os serviços de terapia e de acompanhamento terapêutico nas policlínicas e os leitos de urgência nos hospitais municipais. 



Relato dos profissionais residentes


Brasil de Fato conversou com algumas profissionais residentes em saúde mental e que atuam nos Centros de Atenção Psicossocial de João Pessoa. Todas, sem exceção, solicitaram que seus nomes e imagens não fossem identificados, pois temiam retaliações e perseguições por parte das gestões desses espaços.


Portanto, vamos usar como pseudônimo para essas fontes os nomes de pessoas que foram importantes dentro da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial no Brasil e no mundo: a fonte 1 será Basaglia*, em homenagem as ideias e práticas do psiquiatra Franco Basaglia, que revolucionou, a partir da década de 1960, as abordagens e terapias no tratamento de pessoas com transtornos mentais na Itália; a fonte 2 será Nise*, em homenagem a psiquiatra brasileira Nise da Silveira, que lutou pelo combate às técnicas agressivas no tratamento de pessoas com doenças mentais e preconizava um tratamento baseado na arte; a fonte 3 será Ivone*, em homenagem a cantora e sambista, Ivone Lara, que também foi enfermeira e trabalhou na equipe de Nise da Silveira, além de ser primordial na consolidação da Terapia Ocupacional na Saúde Mental no Brasil.

Basaglia nos conta que ainda hoje tem crises de ansiedade quando lembra dos seus momentos na residência em saúde mental, onde presenciou as demissões e perseguições de profissionais ligados à luta antimanicomial, e o silenciamento de usuários e seus familiares.

– Faz algum tempo que tento construir meu relatório final porque os traumas desse período interferem na minha escrita. Esses espaços sempre foram lugares de uma luta política muito intensa pela saúde mental, até porque os quatro CAPS de João Pessoa, na época que atuava na residência, eram coordenados por algumas pessoas abusivas. Com a demissão de Vinicius, todos os projetos que pensávamos dentro da residência, caíram – diz Basaglia.

Ela afirma que, entre as inúmeras visitas realizadas aos CAPS, percebia um certo despreparo de umas algumas pessoas das gestões e cita o caso do CAPS Infanto-Juvenil Cirandar, que fica no bairro do Roger, na Capital.

– Percebemos que as pessoas que estavam muitas vezes a frente dessa gestão não eram preparadas e tinham visões muito manicomiais ainda, posso citar a coordenadora do CAPSi Cirandar, que continua até hoje, e já foram relatados vários abusos de autoridade que ela comete, inclusive a residência deixou de ir para esses espaços porque não conseguimos sustentar a pressão de trabalhar lá, até porque ela destrata as pessoas, não deixa elas fazerem o trabalho, é como se fosse um incômodo para ela realizarmos o trabalho que está do jeito que a RAPS é preconizada, ela ficam, como posso dizer... ficam como se fosse um afronte à elas, um afronte fazer o serviço da forma como prevê a RAPS, eu não entendo muito bem (a reação) – conta.

A profissional ainda pontua um caso emblemático de silenciamento e repressão em relação a participação de usuários na Semana da Luta Antimanicomial. “No mês de Maio, especificamente dia 18, é quando comemoramos o dia da Luta Antimanicomial e essas pessoas (gestoras dos espaços) ficam extremamente “armadas” para esse movimento. Eu lembro, uma vez, quando preparamos uma comemoração do maio antimanicomial, na época, a coordenadora não permitiu que os usuários fossem participar, não permitiu que eles estivessem em uma comemoração do dia da luta deles”, comenta. 



O caso do CAPS AD III David Capistrano


Em maio de 2022, durante fortes chuvas na capital paraibana, o teto do Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas, David Capistrano, que fica localizado no bairro do Rangel, acabou desabando e tendo de ser interditado pela Defesa Civil. A prefeitura de João Pessoa realocou os/as usuários/as para uma Policlínica no bairro de Jaguaribe, mas o que era pra ser só momentâneo, já dura mais de um ano. Aqui vamos retomar o depoimento das residentes em saúde mental com as falas de Nise e Ivone sobre o funcionamento do Caps nesse espaço.

– O CAPS AD III funciona em quatro salas aqui na Policlínica de Jaguaribe, espremido entre um corredor. O ponto grave é perder o caráter 24h dele que possuía leitos para atendimento de urgência e acolhimento dos usuários. É um Caps que não tem mais essa configuração de um ano pra cá, o que é um problema; sem contar que ele funciona das 7h às 16h, mas quando dá 14h já não tem mais ninguém por aqui porque o serviço está descaracterizado, e a tarde já não tem mais oferta de oficinas – explica Ivone.

Nise reafirma a fala da colega e aponta pontos críticos como alimentação precária. “Depois de 14h não tem mais alimentação, não tem banho, não tem lugar de descanso, café da manhã é bem precário e o almoço tá bem regrado. Hoje mesmo teve usuário que ficou sem almoçar, enfim, é um espaço bem complicado. As vezes a comida não dá pra todos, só para os primeiros que chegarem”, desabafa. E ainda completa, “para que o usuário receba essa quentinha eles obrigam que os usuários cheguem antes das 9h, participem das oficinas e, se isso não acontecer, ele não tem direito à alimentação”, finaliza Nise. 


Ivone ainda explica que os serviços são limitados e o que acontece é com muita luta dos que ainda acreditam no trabalho. Ela também afirma que a gestão sempre está na posição de defesa contra os profissionais, residentes e usuários que ali estão, levando a um distanciamento do que é o conceito de CAPS.

– A gestão não consegue minimamente se organizar para atender pelo menos até 16h ou até para ampliar esse horário de atendimento, então, essa equipe se restringe ao turno da manhã com as oficinas, mas um CAPS não deve se restringir somente a oficinas, precisa de atividades extras, cultura, lazer, terapias, atividades na praia, bica... Nossa crítica é que acontecem somente duas oficinas: uma na terça e outra na quarta, essas feitas por nós, após muita luta e propostas, realizada por pessoas que acreditam na reforma psiquiátrica e entendemos o que é um CAPS. As demais oficinas são desenhos já prontos pra eles pintarem e colocarem palitinhos em uma folha, isso não é oficina, eles não se interessam – explica.

O usuário do CAPS AD III David Capistrano, J.C, enviou um depoimento ao Brasil de Fato falando sobre sua angústia de não ter um espaço do CAPS no seu distrito de saúde. “Só nós os usuários é quem sabemos o que sofremos lá, no dia a dia, temos que sair do nosso bairro Rangel para ir para aquela clínica. Pelo amor de Deus, é preciso toda vez a gente ter que sair de casa para pedir para ajeitar um caps, um lugar que é nosso? É obrigação desses prefeitos fazerem isso pela gente, nós estamos precisando do nosso serviço de volta porque já morreu amigo meu usuário no meio da rua porque não teve como chegar no caps, por falta de assistência. Eu não quero ver mais amigo meu morrendo, isso num pode tá acontecendo aqui em João Pessoa. Nossa reinvindicação é que esse CAPS volte para nosso bairro porque inventam essa reforma e não terminam, não tem fim?”, afirma o usuário.

A irmã de um outro usuário, esse do Caps III Caminhar, a senhora C.R, afirma que o irmão sente muita falta do serviço, pois seus amigos e amigas estão todas lá. Depois que iniciou a reforma em dezembro, o Caminhar ainda não está com suas atividades plenas. “Ele gosta bastante da oficina de música e nesse período sem oficinas ele ficou muito triste, só com a medicação mesmo, acabou ficando reservado, emagreceu, tudo isso por falta da rotina dele, dos amigos que fez por lá e da música que o equilibra bastante”, disse a familiar do usuário. 



Perseguição


Nise conta que os casos de perseguição são constantes, além de ameaças aos usuários do serviço. “Temos tomado muito cuidado em tudo que fazemos ou dizemos, somos filmadas a todo momento e os usuários são ameaçados com frases do tipo ‘se por acaso vocês não se comportarem, esse caps sai de funcionamento e vocês ficam desassistidos’”, afirma.

A residente ainda levanta um ponto do silenciamento dos usuários do serviço pois, até a semana passada (18 de agosto), estavam vetadas as Assembleias dos Usuários dos CAPS, que é um espaço de cuidado e autonomia aconselhado pelo Ministério da Saúde. “Eles justificaram que é porque ainda não tinham notícias sobre o novo espaço e não queriam deixar eles ansiosos”, explica. 



Visão religiosa e manicomial


Outra questão que Nise afirma é a visão religiosa atrelada ao tratamento de alguns pacientes, além do fato de profissionais que questionam e trabalham com preceitos e ideias da luta antimanicomial serem perseguidos. “Qualquer cobrança feita pelos usuários, os funcionários alteram a voz e deixam claro que é preciso ser grato pelo pouco que eles têm, inclusive, pela comida que recebem”, completa.



Números e financiamentos


Dados apurados e enviados ao BdF pelos coletivos em defesa das RAPS mostram que João Pessoa recebe, anualmente, mais de 4 milhões de reais através da Portaria GM/MS 660/2023, publicada no Diário Oficial da União de 4 de julho de 2023, que institui recomposição financeira para os CAPS:



Valores recebidos pelos CAPS de João Pessoa:


CAPSad III David Capistrano - R$ 133.466


CAPS III Caminhar - R$ 106.943


CAPS III Gutemberg Botelho - R$ 106.943


CAPSi Cirandar -  R$ 40.840


Total Mensal: R$ 388.192


Total Anual: R$ 4.658.304




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