Rio de Janeiro, 21 de Novembro de 2024

Godard morreu, mas ainda é possível sonhar...

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Sexta, 16 de Setembro de 2022 às 08:33, por: CdB

Nunca a morte de um cineasta ocupou tanto espaço na imprensa europeia como a do franco-suíço Jean Luc Godard, considerado como um dos principais realizadores da Nouvelle Vague, cujos filmes revolucionaram a sétima arte e influenciaram o próprio cinema norteamericano. No dia de sua morte, muitas televisões européias reprogramaram o primeiro longa-metragem de Godard, A Bout de Soufle. Godard foi provocador até ao morrer, preferindo um suicídio assistido (permitido na Suíça) a se sujeitar à lei natural da velhice, mesmo porque já considerava muitos seus 91 anos. Como outros cineastas da época, Godard começou sua carreira, em 1950, como crítico nas revistas francesas Cahiers du Cinema, La Gazette du Cinema e Arts. Ao mesmo tempo, fazia curtas-metragens. Seu primeiro filme longa-metragem A Bout de Soufle, em 1958, foi um grande sucesso junto à crítica e ao público e revelou o cineasta inovador admirado em todo mundo. Dois anos depois, fez um filme de crítica à guerra da França na Argélia, O Pequeno Soldado, seguido de um comédia musical Une Femme est Une Femme. Segue um comentário de Celso Lungaretti, um admirador de Godard desde seus primeiros filmes. Rui Martins.

Por Celso Lungaretti
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Jean Luc Godard revolucionou o cinema Puro Godard! Em meio a uma discussão com Marianne, Ferdinand diz: "Viram? Ela é sempre assim!". Ela: "Com quem você está falando?". Ele: "Com os espectadores". Ela, após olhar para trás e tomar um susto: "Mas, nós não devemos fazer isso".
Na década de 1960, curti intensamente os filmes do cineasta francês Jean-Luc Godard, que se foi por suicídio assistido nesta 3ª feira (13), aos 91 anos, aparentemente apenas por estar "exausto", cansado de viver.
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Se eu fosse ainda o crítico de cinema que um dia fui, relembraria toda a sua carreira, mesmo não a tendo acompanhado com interesse depois de 1968.
Mas, já não preciso representar tais papéis. Posso me ater ao que Godard para mim representou. Aos que quiserem ler algo mais na linha convencional, recomendo esta minha evocação da nouvelle vague, filão do qual ele foi o expoente mais conhecido e influente.
Deveria ter uns 15 anos quando me atraiu uma acanhada mostra do cinema francês, com a exibição de sete filmes, um por dia, alternados em duas salas de um bairro paulistano pouco dado a iniciativas artísticas: a Vila Mariana.
Godard, sendo preso nos protestos de 1968...
Era um momento em que procurava um caminho na vida e a novidade me interessou a ponto de pegar dois ônibus, com um amigo da escola, para irmos assistir a alguns desses filmes.
Dois eram do Godard, se bem me lembro O pequeno soldado (1963) e Tempo de guerra (1963). Misturando poesia, tiradas filosóficas, HQ, non sense, sacadas políticas, humor negro, irreverências de todo tipo, eles me deslumbraram. Desconstruía o cinema que eu conhecia até então, propondo um novo, muito mais ousado e criativo.
Assisti a quase tudo dele dessa época.  Compunha um painel das opções existenciais dentro da sociedade burguesa, negando-as.
Seu Tempo de Guerra me surpreendeu por ser uma produção baratíssima, com atores desconhecidos, e mesmo assim tão contundente na crítica às guerras capitalistas, em que coitadezas são laçados para servirem de buchas de canhão e destruídos sem sequer saberem por que estavam lutando.
Em O Desprezo (1963), bateu pesado nos esquerdistas bem pensantes que, para subirem na vida numa sociedade que afirmam detestar, abrem mão de suas convicções sem pestanejar. No caso, trata-se de um roteirista de cinema que, ao ter a grande chance de projetar-se na profissão, não hesita em empurrar a esposa para os braços do poderoso produtor que a deseja, passando a receber dela o merecido desprezo. Quantos semelhantes a ele conheci por aí...
[Ficou associado a um dos momentos mais bizarros de minha militância clandestina. Lá pelo último trimestre de 1969, ocorreu de eu ficar sem abrigo, descontatado da VPR, com minha foto nos cartazes de procurados, esperando o ponto que um companheiro de outra organização conseguiu marcar para eu reencontrar-me com os meus.
...e convencendo colegas a pararem o Festival de Cannes.
Depois de uma noite tumultuada e insone, eu tinha o dia inteiro pela frente, precisando fazer hora discretamente, sem chamar a atenção, pelo centro velho de São Paulo. E. noutro cinema que não costumava exibir os chamados filmes de arte, estava em cartaz O Desprezo.
Entrei e assisti a três sessões seguidas, sempre caindo no sono logo no comecinho e acordando quando as luzes se acendiam no final, sobressaltado com a possibilidade de a arma que eu carregava sob o braço ter sido vista por alguém.  Afinal, fui-me embora para meu ponto... e só veria inteiro esse filme décadas depois.]
Prestou tributo aos pequenos marginais que povoam a literatura e a sétima arte da França, de uma forma encantadora e com um amor livre que chocava quem se acostumara ao moralismo estadunidense, em sua estreia no longa-metragem: Acossado (1960).
Representou o admirável mundo novo que a tecnologia estava criando como ums sombria distopia em Alphaville (1965) .
Fez sua declaração de horror aos Estados Unidos, a tudo que  o país era e a tudo que sua lavagem cerebral cinematográfica projetava para o mundo, em Made in USA (1966), do qual nunca esqueço a Anna Karina esclamando "Que vontade de vomitar desde que me arrasto por aqui!".
E o meu predileto, O demônio das onze horas (1965), que cansei de rever, é sobre um intelectual que rompe com sua vida previsível ao embarcar numa aventura com sua nova amante, que está sendo caçada por uma gang ou serviço secreto em razão de uma história complicada (que o filme não esclarece) e se torna também alvo da perseguição.
"O desprezo": o roteirista só observa o poderoso produtor dar uma óbvia cantada na sua esposa. 
Ou seja, mostrava uma via de escape romântica a uma existência insossa e desprovida de significado. "Foi meu primeiro, meu único sonho", dizia uma das frases disparadas pelos personagens a pretexto de nada, mas que, na verdade, comentavam a ação do filme.
E encontrar outra vida, naquele momento, era exatamente meu primeiro sonho. Só que, ao contrário do Ferdinand (Jean-Paul Belmondo) do filme, que nem agonizante admitia que a namorada Marianne (Anna Karina) o chamasse pelo apelido carinhoso de Pierrot, eu ainda teria muitos outros sonhos pela frente,...
Até que a busca artística do Godard chegou ao ponto de maior proximidade com minha busca pessoal em A Chinesa, que estreou na França em agosto de 1967 mas só chegou ao Brasil no ano seguinte.
Mostra um grupo de jovens reunidos numa comunidade para aprenderem teorias revolucionárias e tentarem viver e se relacionar como homens novos. Quando os ventos de mudança sacudiram o mundo em 1968, A chinesa foi reconhecido como um filme premonitório. Aqui, se constituiu, simplesmente, no que mais marcou nosso grande ano da contestação.
Na virada de 1967 para 1968, eu vivenciara o mesmo que A chinesa mostra, a reunião com outros principiantes para estudar a revolução e conviver de maneira solidária e livre com aquela que viria a ser doravante minha família principal.
E, como os personagens da fita, saí desse trailer da revolução disposto a dedicar a ela o resto da vida, passado então a defrontar-me com as dificuldades para levar à prática a opção que fizera, muito piores aqui do que na França.
Alain Tanner, herdeiro de Godard, morreu dois dias antes
Então, enquanto Godard e outros cineastas interrompiam aos berros o Festival de Cannes de 1968 (o que nunca ocorrera e jamais ocorreria de novo) porque a verdadeira arte naquele momento se encontrava nas barricadas de Paris, eu e três colegas interrompíamos aos berros as aulas do Colégio MMDC, numa Mooca que não via algo semelhante desde que nela se iniciara a grande greve anarquista de 1917.
A partir de 1968, fui fazer da vida real o meu próprio filme, então não precisei mais do Godard e nem acompanhei atentamente sua carreira.
Mas, por outra coincidência, seria eu o crítico paulistano que mais entusiasticamente acolheria o filme Jonas, que terá 25 anos no ano 2000, do cineasta suíço Alain Tanner, quando este estreou aqui (com um considerável atraso).
Os críticos da grande imprensa detestaram, eu adorei e dei uma pequena contribuição para ele acabar virando um cult dos saudosos de 1968, principalmente no bairro boêmio do Bixiga, cujo cineclube cansou de exibi-lo.
Tanner então  me pareceu o diretor que conseguira dar o passo adiante que faltou a Godard depois de A Chinesa.
E não é que ele morreu exatamente dois dias antes de Godard, e aos 92 anos, portanto quase com a mesma idade?! (por Celso Lungaretti)
Celso Lungaretti é jornalista, ex-crítico de cinema, editor do blog Náufrago da Utopia, foi militante ativo contra a Ditadura militar, preso e torturado no Doi-Codi.
Direto da Redaçao é um fórum de debates publicado no jornal Correio do Brasil pelo jornalista Rui Martins.
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