Vício da geração Z, Internet e as redes sociais são catalisadores para uma infância cada vez mais ansiosa, solitária e fragilizada.
Por José Guilherme Pereira Leite – de São Paulo
Onde brincam as crianças? (Where do the children play?, perguntava-se Cat Stevens, no rescaldo da contracultura, numa canção belíssima de crítica ao desenvolvimento técnico e ao crescimento econômico desenfreado. Entre muitas outras coisas, os versos de Stevens aludiam ao fuzuê urbano e à falta de espaço nas cidades. O tempo respondeu à pergunta de Stevens de maneira inusitada: elas brincam em seus celulares.
A respeito dessa espécie de anomia, a editora Companhia das Letras prestou ao Brasil um serviço de utilidade pública, traduzindo com rapidez o último livro de Jonathan Haidt, A Geração Ansiosa, lançado ainda há pouco nos Estados Unidos. A primeira edição já foi reimpressa mas a obra, até agora, criou um barulho baixo se considerarmos a brutal gravidade do assunto. Trata-se de expor “o colapso da saúde mental entre os jovens e as consequências drásticas de uma vida hiperconectada e sem supervisão no ambiente digital”. Enquanto o ego da moçada é sugado e triturado pela hélice pesada das redes, o público letrado do país dá mostras de ainda ignorar esse autor, e sua obra. A página de Haidt, no Instagram, é seguida por uma quantidade ínfima de brasileiras e brasileiros, o que é um assombro.
Essa baixa repercussão do livro talvez possa ser explicada, pela própria dinâmica informacional que enfrentamos, aqui e agora: vivemos uma substituição acelerada e diuturna de assuntos e escândalos, debatemos uma neo-estultice por semana enquanto a estrutura fundamental da economia digital permanece inalterada. Trump e Musk agradecem.
A página de Haidt, a propósito, tem 332 mil seguidores e é um desdobramento militante de suas pesquisas, muito conclusivas. Ele apresenta seu trabalho como sendo um conjunto de provas cabais do estrago, em síntese, esse: “O declínio da saúde mental [juvenil] é indicado por um aumento acentuado nos índices de ansiedade, depressão e automutilação, desde o começo da década de 2010”. Havendo chegado a um diagnóstico, Haidt passou para o ativismo político e jurídico direto, militando sem delongas, conduzindo sua prática à defesa de 4 Novas Normas para o mundo digital. São elas, bastante simples:
Crianças sem smartphones até o ensino médio
Crianças sem redes sociais até os 16 anos
Escolas sem telefone
Recuperação do brincar, com mais independência no mundo real.
“Geração Z”
Cada uma de tais ideias têm sua razão de ser, num programa de reação e virada. O maior dos problemas a serem enfrentados, depreende-se de sua leitura, é o amplo processo de descorporificação ocorrido com os seres humanos da “Geração Z”, nascidos de 1995 em diante, porque a economia digital atuou como “inibidora de experiências”, e não como catalisadora, conforme se esperava nos primórdios da utopia digital, no começo do milênio. Não se pode reduzir o problema aos mais jovens. Todos fomos vitimados. Eles, porém, foram mais.
Enquanto essa desgraça relacional e cognitiva se encena, assistimos ao circo daquilo que Haidt chama “os quatro prejuízos fundamentais” da infância contemporânea, a saber: privação de sono, privação social, fragmentação da atenção e vício (simples vício). Professores, vimos impávidos os nossos alunos meterem a fuça em telinhas, em plena treva do dia. O smarthpone é a nova caverna de Platão. Pedestres entontecidos, atravessamos o leito carroçável com nossas espinhas dorsais vergadas. Os almoços e encontros estão turvos de desatenção afetiva. Os restaurantes converteram-se em centros públicos de abdução, com espectros de comensais ausentes. Até nas pistas de dança o negócio é sacado do bolso. Não é fácil enfrentar a fera, alerta Haidt, nem se trata de uma condenação moral: é problema de saúde pública. A infância orientada para o digital é uma droga. É como se houvéssemos legalizado um coquetel corrosivo de psicotrópicos radicais, na dissociação absoluta do entorno.
Mas o alerta de Haidt não é só sobre os danos relacionais, colaterais. É também, e sobretudo, sobre os conteúdos em si, isto é, o duplo dano: ao mesmo tempo em que arranca as crianças do convívio carne-e-osso, as redes sociais as massacram por aquilo que veiculam, uma fábrica de choques e traumas cujo estrago é notável em estatísticas sólidas. Tudo isso conduz o autor a formular essa mensagem-mãe: o pior lugar onde uma criança pode ir, desacompanhada dos pais, é a internet. Com esse pano-de-fundo, Haidt coloca em questão, brilhantemente, as fobias anti-urbanas que há anos iludem a classe média dos prédios bege: tudo começou, sustenta o autor, quando uma geração preconceituosa e superprotetora acreditou defender seus filhos dos “perigos” da cidade, “trancando” as crianças em casa. Where do the children play? Pareceu-lhe mais seguro fazer isso, como se o game de sangue jorrado fosse melhor que a pracinha. Ou seja, na origem da corrosão se encontra, como sói, um classismo asqueroso. “A geração ansiosa” é um livro duro, mas também uma ode à brincadeira, ao contato e aos espaços livres públicos.
E Haidt, ao contrário de muitos analistas psicológicos de hoje, é atento à base material da vida, apontando os obstáculos à superação da mixórdia: os interesses das big techs. Tendo montado para si um mercado bárbaro de anúncios escrotos misturados a programações escrotas e lixo hipnótico escroto, os mestres do metaverso se recusam a deflacionar seus ganhos, por razões que vão dos simples contratos de publicidade (milionários, by the way) aos circuitos de valorização acionária e, obviamente, o tráfico de dados que tornou-se um asset violento. As big techs sabem até mesmo quem está prestes a cometer suicídio, afirma o autor. A “geração ansiosa” é, assim, a vítima mais fresca da predação capitalista ilimitada.
O mais interessante das proposições de Haidt é o fato de ser o sinal perfeito de uma nova era. A fase de oba-oba utópico acabou para os entusiastas da rede. Os níveis de participação política aumentaram, conforme a utopia projetada, mas depois se degradaram em manicomias cognitivas chocantes, infensas ao teste de realidade. A “mamadeira de piroca” talvez seja dessa era o nosso mais grotesco símbolo.
José Guilherme Pereira Leite, é escritor, crítico, ensaísta e professor universitário. É doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo.
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