A militarização da educação reforça uma lógica de controle e transforma corpos negros em alvos de um projeto de meritocracia da morte.
Por Amarílis Costa – de São Paulo
A decisão do ministro Gilmar Mendes de autorizar o governador Tarcísio de Freitas a retomada das escolas cívico-militares em São Paulo é mais do que um aceno político. Trata-se de um gesto que escancara um projeto maior, em que a exclusão e a repressão são sistematicamente normalizadas. Para crianças e jovens negros e periféricos, essa escolha estatal funciona como um lembrete cruel de que, seja nas ruas ou nos espaços de ensino, suas vidas são vistas como descartáveis.
As escolas cívico-militares, em sua estrutura e práticas, espelham a lógica de controle que rege as instituições correcionais, transformando o espaço escolar em um campo de vigilância e repressão. Enquanto escolas particulares investem em métodos pedagógicos disruptivos, como o ensino de artes, educação financeira e robótica, as escolas destinadas aos filhos dos pobres oferecem “mãos para trás e cabeça baixa”. E a escola, em vez de ser um espaço de construção de ideias e narrativas, converte-se em uma extensão do aparelho repressivo do Estado.
O Mapa de Chacinas, realizado pela Rede Liberdade em parceria com a Clínica de Direitos Humanos do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), apresenta um retrato alarmante: territórios negros e periféricos são especialmente afetados pela violência de Estado. Na Bahia, epicentro dessa realidade, a juventude negra enfrenta o que o estudo descreve como “um cenário atônico de violência”. Com base em décadas de dados, o mapa demonstra que chacinas não são meros desvios de conduta, mas uma prática sistemática, inserida nessa estrutura. O problema é tão grave quanto o das balas que tiraram vidas.
Nas escolas cívico-militares, em que a disciplina e o autoritarismo são as lições mais importantes, o futuro também é ceifado. Esses espaços não apenas moldam comportamentos submissos, mas também ensinam, de maneira simbólica e prática, quem merece viver e quem deve morrer. Sob a lógica da “meritocracia da morte”, crianças negras crescem absorvendo a ideia de que o fracasso ou a sobrevivência dependem de méritos individuais, e não das estruturas que as relega à marginalidade.
Não é por acaso que as escolas cívico-militares se tornaram palco de conflitos e discursos de violação de direitos. No Tocantins, um vídeo que viralizou nas redes sociais mostrou alunos que cantavam sobre “prender” e “matar” como parte de uma atividade escolar. A repercussão levou ao afastamento do diretor e de agentes envolvidos, mas o episódio exemplifica como a cultura de violência é reforçada em ambientes militarizados. Em São Paulo, manifestações contra a militarização também foram reprimidas com a presença da polícia, em um claro recado de que questionar o modelo não será tolerado. A imposição de práticas militarizadas nas escolas públicas equivale a um treinamento para a submissão, e prepara essas crianças não para o futuro, mas para uma conformidade que perpetua sua marginalização e o controle estatal sobre suas vidas. Esse controle, como bem articulado em Crítica da Razão Negra, de Achille Mbembe, sustenta-se na desumanização e no apagamento histórico dos corpos negros. Paralelamente, a fetichização do algoz, amplificada pelas redes sociais, ajuda a romantizar figuras associadas a posições de poder, mesmo em contextos polêmicos.
O programa, defendido sob o pretexto de melhoria na disciplina e nos índices educacionais, perpetua desigualdades. Estudos já apontam que a militarização das escolas não traz melhorias significativas no aprendizado. Ao contrário, ela silencia críticas, reprime a criatividade e afasta ainda mais os estudantes da ideia de uma educação libertadora. Esse modelo não resolve os problemas estruturais da educação pública , ele apenas transfere para as crianças o peso de uma sociedade que insiste em normalizar a violência.
Na Bahia, o Mapa de Chacinas destaca a íntima relação entre a violência estatal e a exclusão socioeconômica. O estado, de maioria negra, vive a dinâmica de um “direito penal do inimigo”, no qual populações vulneráveis são tratadas como alvos a serem eliminados. O recorte histórico do estudo, que abrange desde os anos 1980 até hoje, demonstra como o fenômeno da chacina atravessa diferentes regimes políticos e se perpetua em pleno Estado Democrático de Direito.
A violência estatal, como evidencia o Mapa de Chacinas, é uma constante nos territórios negros e periféricos. Essa violência se manifesta não apenas nas execuções sumárias, mas também na exclusão sistêmica que permeia o sistema educacional. As escolas cívico-militares são um exemplo claro de como o ensino público é moldado para atender a um projeto maior de controle social e repressão. A professora Christen A. Smith, em Afro-Paradise: Blackness, Violence and Performance in Brazil, descreve como a violência policial em Salvador cria um espetáculo de exclusão, transforma corpos negros em alvos e reforça o exotismo da cultura negra enquanto ignora suas lutas por sobrevivência. Da mesma forma, a militarização das escolas fortalece a ideia de que a resistência negra deve ser sufocada desde cedo.
As escolas
Se as escolas ensinam que a morte violenta é uma função do Estado, o que nos resta como sociedade? Quando esses espaços se tornam extensões de um sistema que mata, e quando dados, como os do Mapa de Chacinas, revelam que territórios negros são alvos constantes, a pergunta que fica é: a quem interessa perpetuar essa realidade?
Quando os espaços de ensino reproduzem a lógica repressiva das instituições correcionais, a criatividade, a crítica e a autonomia dos estudantes são sufocadas. A militarização das escolas públicas, além de falhar em melhorar os índices educacionais, representa uma afronta à ideia de educação libertadora. A exclusão dos corpos negros desses espaços se dá tanto pelo silenciamento das vozes dissidentes quanto pela imposição de uma pedagogia que naturaliza a violência. A professora Christen A. Smith destaca como o impacto da violência nas comunidades negras vai além do ato imediato e perpetua traumas que reverberam por gerações. A educação militarizada, nesse sentido, não apenas disciplina corpos, mas destrói possibilidades de futuro.
Os dados apresentados pelo Mapa de Chacinas oferecem um panorama contundente sobre a sistematicidade da violência estatal em territórios negros e periféricos. Essa análise detalhada permite compreender as dinâmicas de exclusão e repressão que sustentam essa realidade, convidando à reflexão sobre o papel do Estado e a urgência de uma resposta coletiva. É preciso confrontar a militarização não apenas como um modelo educacional falho, mas como parte de um projeto maior de exclusão e violência. Enquanto o Estado transforma crianças em alvos e professores em soldados, a juventude negra continua pagando o preço mais alto.
A escola deve ser um espaço de emancipação e construção coletiva, mas, nas escolas cívico-militares, ela é transformada em extensão do aparato repressor do Estado. Enquanto a elite educa seus filhos para a inovação e a liderança, a juventude negra e periférica é treinada para a obediência e o apagamento. A educação pública precisa ser um instrumento de justiça social, e não mais uma engrenagem na máquina de opressão. A perpetuação desse modelo é um reflexo de um Estado que prefere investir na repressão do presente em vez de construir um futuro verdadeiramente inclusivo e justo.
Amarílis Costa, é advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP, diretora executiva da Rede Liberdade.
As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil