Rio de Janeiro, 22 de Novembro de 2024

Fantasma da ditadura completa 60 anos, ainda mais resiliente

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Quinta, 28 de Março de 2024 às 19:18, por: CdB

Traços autoritários não somente do período da ditadura militar, mas de outros governos, como do Estado Novo de Getúlio Vargas e do período escravocrata, continuam presentes na sociedade brasileira.


Por Redação, com Caroline Oliveira/BdF - de São Paulo

A transição da ditadura civil-militar para a Nova República na década de 90 poderia ter sido um período de revisão do autoritarismo incrustado na sociedade brasileira desde a sua formação. No entanto, os traços autoritários, exacerbados ao longo da ditadura, são legados que o país carrega até hoje.

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A ditadura torturou e matou quem pensava diferente dos militares que tomarm o poder


Por trás da vigência desses traços, estão uma sociedade e seguidos governos que se recusam a fazer um acerto de contas com o passado. Recentemente, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), afirmou que não pode "ficar remoendo sempre" o passado ditatorial, quando questionado sobre o cancelamento da cerimônia de aniversário de 60 anos do golpe de 1964, planejada para o dia 1º de abril deste ano.

— O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, ficar remoendo sempre, ou seja, é uma parte da história do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente, eu não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país para frente — disse Lula, em recente entrevista.

 

Passado


Ivo Lebauspin, preso e torturado durante a ditadura, afirma que "é um erro não trabalhar a memória da ditadura”

— Há uma narrativa de que é melhor se reconciliar com o passado e esquecer o que aconteceu. Isso é impossível sem saber o que efetivamente aconteceu. Algumas pessoas acham que para se avançar no plano político é preciso varrer essas coisas para baixo dos tapetes, por uma pedra em cima desse passado, ir em frente e fazer acordos. Isso já foi feito. Isso vem sendo feito há anos. Desde o fim da ditadura militar não se analisa a ditadura militar, não se julga, não se faz nada — afirmou o sociólogo ao site de notícias Brasil de Fato (BdF), nesta quinta-feira.

Lebauspin associa, por exemplo, a presença militar na tentativa de golpe para manter Jair Bolsonaro (PL) na Presidência como um resquício da intervenção militar.

— Tem tudo a ver com a não memória da ditadura e o não julgamento. Na Alemanha se faz um esforço monumental para lembrar sempre tudo que aconteceu. Tem museus do Holocausto em várias partes, e as pessoas sabem o que aconteceu. Houve julgamento, os fatos foram analisados e julgados. Aqui não houve isso — observa.

 

Ideologias


Na mesma linha, o professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Daniel Aarão Reis Filho, afirma que lembra de "líderes de partidos progressistas, como Tancredo Neves em 1985, conclamando as pessoas a não olharem para o espelho retrovisor, mas a olhar para frente e não ficar remoendo as feridas". Isso mostra que o Brasil "dedicou pouca atenção para refletir sobre a estrutura de Estado montado durante a ditadura e suas políticas".

Com isso traços autoritários não somente do período da ditadura militar, mas de outros governos, como do Estado Novo de Getúlio Vargas e do período escravocrata, continuam presentes na sociedade brasileira. Entre esses legados, o professor elenca a autonomia das Forças Armadas.

— São um verdadeiro Estado dentro do Estado. Elas têm uma estrutura educacional própria e uma justiça específica. Isso permitiu que as Forças Armadas cultivassem ideologias cada vez mais anacrônicas, mas muito vigentes dentro das Forças Armadas — pontua o historiador.

 

Pacto


O professor explica, ainda, que somente a partir do governo da presidenta deposta Dilma Rousseff (PT) — e ainda timidamente — foram feitos esforços para revisar essa estrutura militar, principalmente com a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 18 de novembro de 2011. Ainda assim, Aarão Reis Filho afirma que "houve uma espécie de pacto: a gente não mexe com vocês, vocês não mexem com a gente. Esse pacto na esperança ilusória de que, com o tempo, as feridas iriam ser sanadas".

Um ano depois do encerramento da comissão, ocorrido em 2014, o pesquisador e integrante da CNV, Lucas Figueiredo, afirmou que o relatório final com 4.328 páginas ficou "muito fraco".

— O pai da criança é o Tancredo (Neves), que fala abertamente que não vai investigar. (José) Sarney entrou vendido porque era muito fraco, ele se escorava nos militares. Depois Collor e Itamar fazem vistas grossas. FHC e Lula colocam a União para combater a abertura dos arquivos na Justiça, que é uma posição mais grave. E você tem a Dilma, que é de uma passividade absoluta, porque as Forças Armadas mentiram descaradamente para ela durante a CNV e ela não fez nada — disse, em entrevista à agência britânica de notícias BBC, à época.

 

Monolitos


Essa passividade dos seguidos governos se somou à articulação da extrema direita dentro dos quartéis, que foi ganhando terreno principalmente a partir da ditadura militar. O professor Daniel Aarão Reis Filho afirma a tendência de extrema direita entre os militares "é muito forte”.

— Nada nos diz que essa tendência está neutralizada — alerta.

O catedrático acrescenta que "houve um esforço geral em transformar as Forças Armadas brasileiras, que eram plurais, em verdadeiros monolitos”.

— As escolas militares continuam intoxicando com teorias próprias da Guerra Fria, anticomunistas e que continuam alimentando que os militares são os donos do civismo e os salvadores da paz, os tutores da República. Eles montaram o sistema educacional extremamente unificado, monolítico, sem pluralismo e sem um culto à legalidade. Esse é um dos legados da ditadura extremamente nocivo à democracia — afirma o professor da UFF.

 

Capitalismo 


Outro legado que lista o professor é o processo das desigualdades sociais e regionais.

— A ditadura propulsou o capitalismo brasileiro para um patamar mais alto. Ao contrário da ditadura argentina, que empurrou o capitalismo argentino para baixo, aqui no Brasil, o capitalismo deu um salto para frente, mas à custa de desigualdade sociais — assinala.

Na visão do professor da UFF, desde então, o Brasil não conseguiu inverter "radicalmente o curso das desigualdades sociais".

— O capitalismo brasileiro continua, fundamentalmente, no padrão do modelo criado pela ditadura, na hegemonia do capital financeiro, que continua sugando as nossas riquezas através dos juros da dívida pública. Metade orçamento brasileiro é destinado a pagar os juros da dívida pública. Tem um processo de hegemonia do chamado mercado, fundamentalmente especulativo, que não se destaca por investimentos produtivos, e essa hegemonia foi consagrada na época da ditadura — conclui.

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