Em meio a processo para transição democrática depois de golpe de 2021, confrontos entre forças do governo e paramilitares deixam mais de 50 mortos e expõem racha entre líderes militares.
Por Redação, com DW - de Cartum
A violência voltou neste domingo a tomar conta das ruas de Cartum, capital do Sudão, e se estendeu por outras regiões do país africano. Os confrontos entre paramilitares e forças do governo já deixaram ao menos 56 mortos e cerca de 600 feridos, afirmou o Sindicato dos Médicos Sudaneses.
Os combates que eclodiram no sábado em Cartum e em outras regiões do país, após meses de tensões entre dois líderes militares rivais. As Forças Armadas do Sudão, sob o comando do general Abdel Fatah al Burhan, e unidades paramilitares das Forças de Apoio Rápido (FAR), chefiadas pelo vice-presidente do Conselho Soberano, Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti, trocaram acusações de provocar o conflito.
Confira os principais pontos para entender o conflito:
Quem é Abdel Fatah al Burhan?
O general Abdel Fatah al Burhan é de fato o líder do país africano. Ele se tornou um nome conhecido em 2019, depois que o exército derrubou o autocrata de longa data Omar al-Bashir, após meses de protestos em massa.
Antigo aliado de Bashir e comandante militar que liderou campanhas criminosas no conflito de Darfur (2003-2008), Burhan mudou de lado com a queda do autocrata em 2019. Ele presidiu o Conselho Militar de Transição, órgão criado para supervisionar a transição do Sudão para o regime democrático, e se tornou presidente interino do país.
No entanto, com o prazo para entregar o poder a governantes civis se aproximando, em outubro de 2021, Burhan deu um golpe, derrubando o primeiro-ministro civil Abdalla Hamdok e acabando com a transição democrática.
Desde então, Burhan reforçou seu controle sobre o país, apesar de constantes protestos e de um acordo de dezembro de 2022 para abrir caminho para um governo de transição civil.
Quem é Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti?
Hemedti desfruta de forte posição desde que Bashir assumiu o poder. Vindo de uma família de pastores de camelos distante da capital, ele subiu na hierarquia para se tornar líder da notória milícia Yanyawid, que deu origem as FAR e são acusadas de cometer crimes contra a humanidade durante o conflito de Darfur.
O conflito em Darfur eclodiu quando rebeldes de minorias étnicas locais lançaram uma insurgência em 2003, alegando opressão do governo de Cartum, dominado por árabes. Estima-se que até 300 mil pessoas tenham sido mortas e 2,7 milhões expulsas de suas casas em Darfur ao longo dos anos, segundo a ONU.
A milícia Yanyawid lutou ao lado das forças de Bashir contra os rebeldes no conflito. Embora não tivesse treinamento militar formal, Hemedti conseguiu conquistar uma posição na máquina de segurança de Bashir. Ele 2013, ele assumiu a liderança do grupo paramilitar recém-formado FAR, que surgiu da Yanyawid.
Com frequência, Bashir contava com o grupo paramilitar para reprimir os protestos e o descontentamento que levaram à sua queda. À medida que as FAR cresciam e se fortaleciam, crescia a preocupação de que o grupo estivesse se tornando mais poderoso do que as forças de segurança oficiais do Sudão.
Em 2017, o país aprovou uma lei que reconheceu as FAR como uma força de segurança independente.
Como Burhan, Hemedti passou para o lado vencedor após a queda de Bashir. Relatos sobre ele especulando o papel de presidente se espalharam depois dele ter se tornado o vice-líder do Conselho Militar de Transição.
Em junho de 2019, uma repressão mortal num acampamento de protestos em Cartum deixou mais de 100 mortos. A ação foi atribuída as FAR. Apesar disso, a posição de Hemedti só se fortaleceu. Seus anos à frente das FAR também o levaram a acumular aliados na Rússia e no Golfo, onde o grupo paramilitar foi enviado para lutar ao lado da coalizão liderada pela Arábia Saudita no Iêmen.
Burhan contou com as FAR para reprimir os protestos após o golpe de 2021. O líder paramilitar, porém, desapareceu dos holofotes na época, deixando Burhan ser o rosto do golpe. Ele foi então nomeado chefe adjunto do Conselho Soberano do governo, sendo efetivamente o número dois de Burhan.
Como eclodiu o atual conflito?
Desde que as forças militares e representantes civis assinaram em dezembro um acordo de transição, estão em andamento negociações para integrar as FAR ao exército sudanês. Analistas acreditam que Hemedti, cujo grupo paramilitar é estimado em 100 mil homens, não seria a favor da reestruturação.
Em fevereiro, num discurso que chamou o golpe de "erro", Hemedti descreveu a ação como a "porta de entrada para o antigo regime". O discurso televisionado ocorreu em meio às crescentes tensões sobre a reestruturação militar, que descarrilhou o retorno ao regime civil.
Uma semana antes do discurso, Burhan disse que não toleraria as FAR operando de forma independente, enfatizando a importância da fusão do grupo paramilitar com o exército. Em resposta, Hemedti disse que "representantes do antigo regime" queriam "provocar uma cisão" entre as FAR e as forças armadas.
A assinatura de um acordo para nomear um governo civil estava marcada para o início deste mês, no entanto, foi indefinidamente adiada no último minuto.
Adiamento da transição democrática
O acordo foi considerado vital para permitir eleições que tratariam a liderança civil de volta ao comando do país depois de anos de turbulência.
Na quinta-feira, o Exército sudanês havia alertado que o país atravessava uma "conjuntura perigosa" que pode levar a um conflito armado depois que unidades das FAR, o grupo paramilitar mais poderoso do Sudão, "se mobilizaram" na capital Cartum e em outras cidades. As FAR deslocaram tropas para perto de cidade de Merowe, a 330 quilômetros do norte de Cartum.
Depois que os confrontos eclodiram no sábado, Hemedti e Burhan trocaram acusações de tentativas de golpe.
Apesar da violência em curso, a diretora da think tank Confluence Advisory, com sede no Sudão, Kholood Khair, afirmou que o desejo de um regime democrático ainda é alto no país. "Ainda há muito apoio à transição democrática. Temos que lembrar que essa luta pelo poder entre generais não é de forma alguma indicativo da política ampla que está ocorrendo no Sudão", ressaltou à agência alemã de notícias Deutsche Welle (DW).