Rio de Janeiro, 21 de Novembro de 2024

Eleição da Bélgica testa boicote da mídia contra ultradireita

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Quinta, 06 de Junho de 2024 às 10:54, por: CdB

Imprensa da região francófona da Bélgica evita rigidamente dar palanque para políticos de ultradireita. Especialistas apontam que isso tem mantido extremistas afastados do poder. Mas qual o limite do “cordão sanitário”?

Por Redação, com DW – de Bruxelas

Da Áustria à Itália, da França à Holanda, há 12 meses a União Europeia acompanha a constante ascensão da extrema direita em regiões importantes do continente. Mas a pequena Bélgica, tantas vezes ignorada, não é exceção: lá a expectativa é que o antes marginal partido Interesse Flamengo (Vlaams Belang, VB) vá tomar de assalto as urnas neste domingo, no pleito federal do país, que ocorre paralelamente à eleição para o Parlamento Europeu.

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Mesmo que partido Interesse Flamengo vença nas urnas, seu líder, Tom van Grieken, dificilmente será novo premiê belga

Entre outras reivindicações, o partido populista de direita quer a secessão da região de Flandres e um “fim da imigração“. Segundo cálculos do site Politico, a sigla, que em 2014 tinha apenas três representantes no Parlamento belga, deverá conquistar a maioria dos assentos, 26 do total de 150.

Só que essa é apenas a metade da história, e a outra metade muda tudo. Estabelecida há quase 200 anos como Estado federativo “colcha de retalhos”, a Bélgica é um conto de dois países: no sul, a francófona Valônia, no norte, Flandres, cujo idioma é o flamengo, com a região de Bruxelas como uma pequena ilha oficialmente bilíngue.

Na emissora pública valona RTBF, quase não se veem políticos radicais de direita exigindo fechamento de fronteiras ou lamentando o ocaso da civilização ocidental, ao vivo na TV. Pois a maioria dos jornalistas aplica o princípio do “cordão sanitário“.

“A regra é que não se deve dar voz direita à extrema direita, acesso direto ao vivo à mídia”, explica a jornalista Maria Udrescu, do diário belga La Libre. “A gente pode citar políticos ultradireitistas, por exemplo, mas sempre situando num contexto.”

Outro motivo da ausência de extremistas na RTBF é a escassez de grandes protagonistas da direita na região. Mas será que não há extrema direita forte na Valônia porque se aplica o cordão sanitário, ou é tão fácil sustentar a medida por não haver uma direita radical de peso na região? Para Udrescu, é como perguntar: quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?

“Cordão sanitário” com dois pesos e duas medidas?

Para Benjamin Biard, do Centro de Pesquisa e Informação Sociopolítica (Crisp), na Bélgica, esse boicote midiático parcial é um fator importante para a ausência de uma extrema direita forte na Valônia: “Reduz a visibilidade. Muita gente simplesmente não sabe sobre os partidos. Porque eles certamente existem, tentando apresentar candidatos e concorrer à eleição.”

Mas essa certamente não é toda a história: as pesquisas de opinião mostram que muitos valões aparentemente sustentam pontos de vista semelhantes aos do eleitorado ultradireitista de Flandres, França ou Alemanha. Muitos acham, por exemplo, que “imigração agrava os problemas de segurança ou insegurança, empobrece a vida econômica e cultural do país”, especifica Biard.

A Valônia já foi o coração industrial da Bélgica, mas há bastante tempo está em declínio, comparada com a populosa e próspera Flandres. Teoricamente, ela deveria ser solo fértil para nacionalismo. Porém trata-se de “uma questão de oferta eleitoral”, segundo Biard.

As legendas ultradireitistas emergentes são assediadas por divisões internas, falta de líderes carismáticos e por um movimento antifascista regional muito bem organizado, pronto a rapidamente protestar e interferir em toda aglomeração da direita.

A RTBF introduziu o “cordão sanitário” cerca de 30 anos atrás, em seguida a um forte crescimento eleitoral do Vlaams Blok, antecessor do Interesse Flamengo, e o dirige contra qualquer grupo extremista que defenda uma ideologia antiliberal. Na prática, contudo, ele tem sido sempre aplicado contra a extrema direita – o que dá margem a críticas.

A jornalista Udrescu reconhece que há um debate sobre até que ponto a regra é justa: “Não é uma ciência exata. Por exemplo: deveria se aplicar à extrema esquerda também? E quanto à N-VA?” A referência é ao segundo maior partido de Flandres, o conservador-nacionalista Nova Aliança Flamenga.

– A Bélgica Francófona é o laboratório europeu para o novo autoritarismo – afirmou em março, na plataforma X, o destacado comentarista conservador Mathieu Bock-Côté, no contexto do debate sobre a aplicação do “cordão” também em relação à N-VA.

No mesmo mês, o ex-senador Alain Destexhe, membro do Parlamento Regional de Bruxelas, escrevia no veículo de imprensa direitista Pan: “O cordão sanitário não é democrático. Longe de combater a censura, a mídia francófona belga orgulhosamente declara hostilidade aberta às forças políticas que ela decreta serem antidemocráticas.”

Extrema direita em quarentena – até quando?

Para a população da Valônia, e, de fato, para a direita radical flamenga, o problema não são apenas as restrições da mídia francófona. Pois, em seguida às conquistas eleitorais do Vlaams Blok em 1991, as legendas tradicionais maiores, inclusive a N-VA, se uniram na promessa de não governar em coalizão com o grupo.

Assim, embora tudo indique que o Vlaams Belang vai sair vitorioso do pleito de 9 de junho, é quase certo que seu líder, Tom Van Grieken, não será o próximo premiê da Bélgica. As coalizões governamentais nacionais tendem a ser amplas e complicadas, refletindo a natureza fragmentada de um país com diversos sistemas políticos paralelos: além de Flandres, Valônia e da região de Bruxelas, há ainda uma pequena comunidade de idioma alemão no leste.

No momento, os políticos do VB de Flandres estão bloqueados pelo boicote de cooperação política. Entretanto, num comunicado por escrito no início de junho, Van Grieken lançou o desafio, visando em especial a N-VA: “Se o Interesse Flamengo for o maior partido, os outros não podem mais se esconder atrás do cordão antidemocrático.”

Enquanto isso, na Valônia ainda encabeçam as pesquisas o tradicional Partido Socialista, de centro-esquerda, e o Movimento Reformador (MR), de centro direita. Mas em 2021 entrou em cena o extremista de direita Chez Nous (Nossa Casa), autodeclarado patriótico, conquistando o apoio tanto do VB quanto da francesa Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen.

Apesar de sua popularidade nas redes sociais, é difícil prever se o Chez Nous vai conquistar algum assento no Parlamento. Numa consulta realizada pelo jornal Le Soir no fim de 2023, apenas 1% dos participantes valões e bruxelenses declarou que votaria nele.

Para Benjamin Biard, a regra do cordão sanitário só tem se mantido tão bem na Valônia por ter sido institucionalizada antes de a ultradireita conseguir fincar pé. Mas “se amanhã tivermos uma extrema direita que conquiste um certo impulso na sociedade, é claro que será muito mais difícil mantê-la fora da mídia”.

Portanto não há como descartar uma mudança do panorama político belga: “Acho que por outros meios, mais rápido do que podemos antecipar, uma extrema direita acabará se desenvolvendo na Valônia também”, conclui o cientista político do Crisp.

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