O Banco Central revelou que os gastos com juros da dívida pública atingiram um recorde, ampliando o rombo nas finanças, enquanto despesas sociais são comprimidas pela austeridade.
Por Paulo Kliass – de Brasília
O Banco Central (BC) divulgou recentemente seu relatório mensal sobre a política fiscal. As informações a respeito da conta do governo federal que consolida as operações associadas ao financiamento da dívida pública confirmam, mais uma vez, que ela se configura como a grande responsável pelo rombo das finanças governamentais. As vozes do financismo costumam se levantar contra os valores gastos com as políticas sociais, os chamados gastos primários. No entanto, não dizem um “ai” quando se trata do volume astronômico que se dirige a uma parcela bastante restrita da sociedade, os detentores de títulos da dívida pública.
Essa conhecida lenga-lenga que procura responsabilizar as despesas com saúde, educação e previdência social pelo suposto desequilíbrio nas contas públicas, não resiste a alguns minutos de análise. Afinal, os recursos orçamentários existem e a ocorrência de eventual déficit fiscal não compromete de maneira alguma o equilíbrio macroeconômico. O BC, por exemplo, exibe um saldo credor de R$ 1,8 trilhão de recursos na Conta Única do Tesouro Nacional, valores que estão à disposição do governo para executar suas políticas públicas. A tragédia recente no Rio Grande do Sul demonstrou, mais uma vez, que é possível disponibilizar recursos para o governo levar à frente suas obrigações. Aliás, diga-se de passagem, esses mesmos recursos que até à véspera o Ministério da Fazenda afirmava categoricamente não existirem. Enfim, tudo é uma questão de prioridade na agenda de quem decide as coisas na Esplanada.
Mas o foco da turma do financismo segue viesado pela abordagem do resultado primário, metodologia essa que exclui a dimensão financeira da conversa. Desta forma, eles conseguem adeptos até mesmo na esfera ministerial para suas propostas de austeridade extremada, que acabará nos levando à privatização da oferta dos serviços públicos. Afinal, esta será a consequência inescapável caso prossigamos com esse estrangulamento irresponsável de verbas para assegurar os direitos previstos na Constituição. Tanto que Fernando Haddad e Simone Tebet, ambos titulares das principais pastas da área da economia, já se manifestaram a favor da retirada de garantias constitucionais de recursos mínimos para saúde, educação e previdência social. Uma loucura!
Juros: o verdadeiro rombo nas contas públicas
Para o mês de abril recente, o BC apontou um total de R$ 76 bilhões endereçados ao pagamento de juros nominais. Com esse dado chegamos a um valor acumulado ao longo do primeiro quadrimestre do ano igual a R$ 286 bi. Trata-se de um valor jamais atingido para o período janeiro/abril de toda a série histórica. Em 2023, por exemplo, os gastos da mesma natureza para o mesmo período haviam registrado um total de R$ 228 bi. Portanto, o que se percebe foi um aumento de 26% nas despesas com pagamento de juros da dívida pública. Nenhuma outra rubrica não-financeira do orçamento recebeu tratamento semelhante. Muito pelo contrário, o controle austericida dos gastos primários, levado a ferro e fogo por Haddad como seu atestado de bom mocismo junto à nata da finança, deu continuidade à estratégia de compressão das contas vinculadas às políticas sociais e aos investimentos governamentais.
Brasil – % despesas com juros sobre PIB – (janeiro/abril)
Até o momento, os dados divulgados nos sugerem que as despesas com juros da dívida pública alcançaram a cifra também recorde de R$ 776 bi ao longo dos últimos 12 meses. Trata-se do segundo maior agrupamento de dispêndios do orçamento federal. Mas sua própria natureza revela a regressividade deste tipo de gasto. Dirige-se, fundamentalmente, aos setores que se localizam no topo de nossa pirâmide da desigualdade. Em outras palavras, trata-se de um processo de apropriação do fundo público pelos grupos sociais que mais renda e patrimônio possuem em nosso País. Em contraposição, por exemplo, temos a conta que mais recursos dispende, a previdência social. Os R$ 890 bi anuais foram distribuídos a mais de 34 milhões de beneficiários, com valor mensal médio de aposentadoria ou pensão em torno de R$ 1.770. Além disso, quase 70% dos benefícios têm valor igual ou inferior a 1 salário mínimo. Assim, é inequívoca a progressividade deste tipo de despesa e o impacto positivo sobre a atividade econômica no setor real e produtivo, cuja natureza é geradora de emprego.
Despesa financeira: a gastança precisa acabar
A série histórica evidencia o maior comprometimento de recursos a serem dirigidos ao pagamento de juros. Trata-se de uma profunda distorção alocativa de valores orçamentários. A política de austeridade comprime as verbas a serem utilizadas nas políticas sociais, ao passo que os valores para despesas financeiras não estão submetidos a nenhum teto, nem limite, nem contingenciamento.
Brasil – Despesas com pagamento de juros (R$ bi)
Outro aspecto a ser considerado refere-se à propensão a consumir e/ou a poupar dos diferentes estratos de renda de nossa sociedade. É sabido que os setores de baixo rendimento têm uma capacidade de poupança praticamente nula. Isso significa que eles tendem a converter em consumo praticamente tudo aquilo que ganham. Assim, tendo em vista a elevada incidência de tributação sobre consumo que caracteriza nossa estrutura de impostos, a realidade é que parcela significativa das despesas previdenciárias terminam por retornar aos cofres públicos (da esfera federal, estadual e municipal) sob a forma de receitas quase que imediatamente. Em sentido oposto, os setores de alta renda, que se beneficiam do pagamento dos juros, tendem a comprometer uma parcela menor de seus rendimentos em consumo. Considerando-se ainda os benefícios tributários de que usufruem, o retorno aos cofres públicos sob a forma de impostos é proporcionalmente muito mais baixo.
Os números oficiais apurados e divulgados pelo próprio governo são um verdadeiro retrato das opções efetuadas pela equipe econômica no que se refere a quais setores são beneficiados e quais são prejudicados pela estratégia colocada em marcha desde o início do terceiro mandato do Presidente Lula. Considerar que o “orçamento está fechado”, como disse Haddad em meio às negociações salariais com as entidades de professores e técnicos do sistema de ensino superior, dá sinais bastante negativos a setores que são importante base de apoio do governo. Alardear cortes e contingenciamentos em programas essenciais para a grande maioria da população não colabora para melhorar os índices de popularidade em baixa.
No entanto, apesar das promessas de Lula e de sua sincera preocupação com a situação dos desfavorecidos, a realidade é que seu governo mantém inalterados alguns quadros de profunda injustiça no que se refere à distribuição de renda e patrimônio, colocando a máquina pública majoritariamente a serviço dos interesses das elites. Esse é o caso da farta distribuição bilionária do pagamento as despesas com juros da dívida e a manutenção inexplicável da isenção tributária para lucros e dividendos.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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