A dificuldade em encontrar uma música que fale sobre a situação da mulher na sociedade, que não subjugue a mulher e que, de preferência, seja cantada por uma mulher, mostra como a desigualdade ainda reina em todos os poros do nosso mundo.
Por Carolina Maria Ruy - de Brasília
A dificuldade em encontrar uma música que fale sobre a situação da mulher na sociedade, que não subjugue a mulher e que, de preferência, seja cantada por uma mulher, mostra como a desigualdade ainda reina em todos os poros do nosso mundo. Isso porque grande parte das músicas, mesmo na nossa rica MPB, com honrosas exceções, quando abordam o gênero, exaltam o papel atribuído à mulher segundo os padrões mais conservadores. Ela ainda é retratada por seus encantos, por sua inocência e recato (como em “Com Açúcar, com afeto”), pelo papel de mãe, ou, enfim, pelo papel de dona de casa. Mesmo que haja uma nova geração com ideias mais avançadas neste assunto, não há ainda uma massa cultural que relativize o predomínio do ponto de vista masculino. Algumas exceções merecem ser destacadas: Mama África, do paraibano Chico César, Masculino e Feminino, do baiano Pepeu Gomes, além de uma vasta gama de músicas cantadas pelo também baiano Caetano Veloso como Tigresa, A Luz de Tieta, Totalmente Demais e Vaca Profana, são canções que renegam a hegemonia do masculino sobre o feminino e tratam da mulher de uma forma mais livre e emancipada. Mas elas contrastam com músicas consagradas pela Bossa Nova e pela própria MPB. Grandes sucessos do cultuado cantor e compositor Chico Buarque, por exemplo, a despeito da importância política de sua obra, falam de uma mulher subjugada ao homem e enquadrada nos padrões de uma sociedade patriarcal. Músicas como: Atrás da Porta, Mil Perdões (na qual ele chega a dizer: “Te perdôo; Por ergueres a mão; Por bateres em mim”), Minha História, Cotidiano, Carioca e a exagerada Mulheres de Atenas.Reflexão
Não se trata de um julgamento, mas sim de uma reflexão. As músicas retratam uma realidade com o qual grande parte do povo se identifica. Quando vistas no conjunto da obra podem ser compreendidas de um ponto de vista crítico ou como construção de uma identidade. Mas por outro lado, cabe ser crítico com relação aos nossos ídolos e buscar enfrentar as grandes contradições que emperram o avanço do debate cultural e político. Hoje as novas ondas que inundam este debate, ondas que, de modo geral, quebram nas rochas do neoliberalismo e nas rochas da negação da luta de classe, trazem com elas, ventos que arejam as ideias sobre a situação da mulher. Sem prejuízo da nossa história cultural, esse movimento merece atenção uma vez que oferece referências para um perfil mais realista das mulheres. Uma dessas referências é a música da cantora (também baiana!) Pitty, Desconstruindo Amélia. Os ventos que trazem Pitty não são os da MPB. Roqueira, sua música é contestadora por natureza. E ela usou com sabedoria tais prerrogativas, de roqueira e contestadora, para virar do avesso uma das mais populares canções brasileiras: Ai, Que Saudades da Amélia, de Mario Lago e Ataulfo Alves.Anti-Amélia
Lançada em 1942, Amélia é a melhor (ou a pior) expressão daquilo que se espera da mulher em um mundo machista. E, ao que parece, foi com base no repúdio a esta ideia que a cantora produziu, em 2009, uma espécie de anti-Amélia, a mulher que cansou de representar um papel que não escolheu, que “vira a mesa e segue o jogo”. Pitty e sua música são a cara do nosso tempo. Ela coloca no cenário elementos que tornam ainda mais estranhas ideias como “Logo vou esquentar seu prato; Dou um beijo em seu retrato; E abro os meus braços pra você”. O cuidado aqui fica por conta do risco de esse debate ser colocado como um fim e não como parte de uma visão mais ampla da luta social e de combate aos opressores. Só em um mundo emancipado, que contemple não só a questão de gênero, mas os anseios de todos os trabalhadores, homens, mulheres, homossexuais, negros, brancos, enfim, todos, a Mama África de Chico César, a Tigresa de Caetano e a Amélia de Pitty, são grandes.Carolina Maria Ruy, é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical.
As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil