Rio de Janeiro, 22 de Maio de 2025

Daniel Lima, padre, poeta e humanista

Por Urariano Mota - No Recife, os afortunados conheciam-no por Padre Daniel, professor da UFPE, antiacadêmico por natureza. E dele falam aventuras dignas de Cervantes e de Camões, mas o Camões popular, cantado em rimas de cordel.

Sábado, 15 de Abril de 2023 às 07:44, por: CdB

No Recife, os afortunados conheciam-no por Padre Daniel, professor da UFPE, antiacadêmico por natureza. E dele falam aventuras dignas de Cervantes e de Camões, mas o Camões popular, cantado em rimas de cordel.


Por Urariano Mota – de São Paulo


Há 11 anos, em 14 de abril de 2012, o padre Daniel Lima foi ali e não voltou. Sei que a data passará em branco, logo para ele, Padre Daniel, de pele escura. Então divulgo a seguir um trecho que dediquei ao poeta e padre inesquecível, no Dicionário Amoroso do Recife.




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Há 11 anos, em 14 de abril de 2012, o padre Daniel Lima foi ali e não voltou

Não pensem que exagero no meu provincianismo do Recife. Mas existe qualquer coisa em Pernambuco que faz do seu território um chão fértil para bons e ótimos poetas. Nem quero aqui chover no molhado e lembrar João Cabral, Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, Ascenso Ferreira, Mauro Mota, Carlos Pena, todos amados pelo mundo culto do Brasil. Não. Me refiro a outros grandes que o mundo inteiro desconhece, que até nisso Pernambuco é um exagero: ótimos poetas não são silenciados somente no estado, são de Pernambuco calando para o mundo.


Quem me desacompanha até hoje tem visto o que escrevi sobre um poeta fundamental da língua, Alberto da Cunha Melo, que os leitores de muitos estados e jornalistas nas redações do sudeste perguntam: “quem? quem?”. Aqui e ali, na medida de minha força e tempo, lembro Geraldino Brasil, quem? Miró, Valmir Jordão, quem? Valter Fernandes, quem? Isso para não lembrar a dívida que tenho com os poetas Everardo Norões, Marcus Accioly… Pois aqui lembro ligeiro, e com um sentimento de desconforto por antes dele não ter falado, o poeta e homem de espírito e graça, de nome Daniel Lima.



Os afortunados


No Recife, os afortunados conheciam-no por Padre Daniel, professor da UFPE, antiacadêmico por natureza. E dele falam aventuras dignas de Cervantes e de Camões, mas o Camões popular, cantado em rimas de cordel. Vou resumir duas ou três, no limite estreito deste espaço. Uma vez, padre Daniel recebeu o original de um romance de um professor da universidade para ler. O diabo é que o livro era ruim demais e além da conta. O que fazer; como falar a verdade ao colega sem ferir a gentileza? Eis o que Daniel lhe disse:


— Ilustre amigo, o teu romance é inferior ao teu talento.


E ganhou, ainda assim, um secreto inimigo. Em outra, na época da ditadura, um militante socialista o visitava na residência, e foram conversando em voz baixa até o quintal. De repente, padre Daniel observa ao visitante:


— Está vendo o vizinho aí no muro? Ele sempre está me espionando.


Ato contínuo: disparou na carreira contra uma bananeira no terreno, e lá nela deu-lhe uma peitada com os braços abertos. Caiu sentado. Surpreso, o jovem correu para ele. E Daniel, baixinho:


— Não foi nada. O vizinho desconfia que sou doido. Agora tem a certeza.



Generosidade


Pois é este homem, de quem sempre se esperou generosidade, a quem uma vez fui vender uma assinatura do jornal Movimento, e ao me receber sedento de álcool e angústia num sábado, assinou o jornal e me fez sair bêbado do uísque guardado “para visitas especiais”, pois é este homem que há muito escrevia poemas e guardava, por timidez ou medo, quem sabe, de não escrever ótima poesia, pois é este homem que recebeu o prêmio máximo da Biblioteca Nacional em 2011, para o seu primeiro livro. Aos 95 anos. Como demora o reconhecimento para essa gente de Pernambuco. Se lesse essa frase, padre Daniel diria:


— Como demora o reconhecimento. E às vezes nem sai.


Ó Daniel, o que é que pode falar um ingrato que há séculos não vai na tua casa? Na última, no último decênio do século XX, estranhei a cor da tua pele, quando te disse:


— Padre, não sei se é a minha memória. Mas eu o lembrava mais escuro.


Ao que ouvi:


— É não, amigo. A gente quando envelhece vai ficando mais branco.


Então entrei e ouvi a crítica amiga a um rascunho de romance que para a sua leitura eu havia deixado. Lá para as tantas, com a verdade do álcool perguntei:


— Padre, como foi a sua luta para se manter na castidade?


E ouvi o espírito que se fez carne em Daniel me responder:


— Foi difícil, amigo. Mas depois dos 80 fiou mais fácil.


Pois é esse homem, que no vigor dos seus 95 anos, com o sexo sob controle (já sei, Daniel, que dirias “sob controle, mas nem tanto”), pois é esse padre rebelde que  surpreende todo o Brasil com a poesia magnífica, fecunda, cheia da graça e da verdade do seu pensamento. Como nesta expressão de beleza:


“Nada será jogado no vazio.
Nem mesmo o vazio da vida,
porque é vida.
Nem mesmo o gesto inútil,
pois-que é gesto.
Nem mesmo o que não chegou a realizar-se,
pois-que é possível.
Nem mesmo ainda o que jamais se realizará,
porque é promessa.
E o próprio impossível
é vontade absurda de existir.
E nisso existe.”


Ou aqui, ao fim, por enquanto:


“Minha mãe era anoitecida.
Às vezes orvalho, às vezes estrela.
De repente, ria. De repente, chorava.
Falava sozinha enquanto trabalhava.
Resmungos, ou não sei se filosofia.
Descascava batatas, partia cebolas
e sonhava
‘Para não perder tempo’, dizia.
Com que seria que minha mãe sonhava?”


Com o prêmio nacional para seu livro Poemas, a poesia e todos nós entramos em festa em dezembro de 2011. Mas em abril de 2012, alegando uma pneumonia, Daniel partiu discreto e não mais voltou.


Urariano Mota, é Jornalista do Recife. Autor dos romances Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude.


As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil



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