Não é ainda ditadura, mas é como se fosse – o governo Bolsonaro vai controlar as produções cinematográficas e teatrais. O restante, livros, televisão, rádio, jornais, é só uma questão de tempo. A regressão cultural já vai avançando.
Por Rui Martins, editor do Direto da Redação
A declarada intenção do presidente Bolsonaro de intervir na Agência Nacional do Cinema, Ancine, com o objetivo de filtrar ou, mais claramente, censurar os roteiros dos filmes, antes de seus produtores buscarem financiamento, pode ser o fim do cinema brasileiro e provocar o desmonte da indústria cinematográfica brasileira.
Essa ação desfechada no mundo do cinema se integra praticamente na “cruzada ou guerra cultural” do governo, iniciada com a substituição do Ministério da Cultura pelo Ministério da Cidadania.
Logo a seguir, Bolsonaro havia nomeado um dramaturgo conservador, Roberto Alvim, para dirigir o Centro das Artes Cênicas da Funarte, Fundação Nacional das Artes (Funarte), atualmente empenhado na convocação de artistas de teatro conservadores para “colocar um fim na propagação do marxismo cultural nos teatros”.
Antes mesmo que o mundo artístico brasileiro, despojado recentemente de suas subvenções, pudesse reagir, a máquina do governo de extrema direita de Bolsonaro já tomou o controle dos comandos decisórios do cinema e do teatro. Não façamos ilusões, na falta de reações haverá uma controle das programações de televisão e rádio. O controle dos jornais será econômico, pela publicidade.
Porém, as consequências do controle da produção cultural brasileira poderão ser visíveis dentro de sete meses, no Festival Internacional de Cinema de Berlim, e, logo a seguir, no Festival de Cinema de Cannes. Aceitarão esses festivais os novos filmes brasileiros dentro dos padrões conservadores ou o cinema brasileiro viverá sua “travessia do deserto”?
Estamos a apenas alguns dias do início do Festival Internacional de Cinema de Locarno, na Suíça, onde o Brasil concorre com um longa e dois curtas-metragens. A seguir, virá a Mostra de Veneza, onde, embora a relação dos filmes selecionados não tenha ainda sido divulgada, a presença brasileira é certa.
A constante premiação da cinematografia brasileira nesses festivais, assim como nos de Cannes e de Berlim, para só citar os quatro principais, poderá ter chegado ao fim. A modificação da própria estrutura da Ancine, na qual ministros do governo serão a maioria, permite antever a aprovação apenas de roteiros de filmes conservadores. Com certeza filmes de fundo religioso evangélico, xaropadas melodramáticas e, talvez, filmes calcados em romances clássicos, filmes policiais e westerns caboclos.
Em todo caso, nenhum dos filmes brasileiros já premiados nos festivais internacionais teria chance, nos dias de hoje, de receber o aval do governo Bolsonaro para buscar financiamento.
A censura bolsonariana proibirá e jogará no lixo praticamente todos os roteiros de filmes em fase de análise atual pela Ancine, provocando o fechamento quase imediato de dezenas ou mesmo centenas de pequenas e médias empresas de produção audiovisual, e causando o desemprego para milhares de pessoas integradas no setor. Grande produtores, como Globo, não sairão ilesos desse massacre, cuja consequência será uma maior invasão dos cinemas, canais de televisão e celulares por filmes americanos.
Ao acenar com o retorno da censura no cinema brasileiro, desta vez antes mesmo de começarem as filmagens, Bolsonaro fará o Brasil viver o mesmo controle cultural que provocou a estagnação das culturas portuguesa e espanhola durante o salazarismo e o franquismo, sem omitirmos as consequências e choques culturais paralelos nos teatros, espetáculos de dança, shows e mesmo na impressão de livros, pois a censura logo se alastrará por esses setores.
Bolsonaro parece disposto a ser mais extremo que os militares no período 1964-85, pois aplicará o moralismo retrógrado evangélico diluído no ranço do velho catolicismo na censura dos roteiros de comédias de costumes, dramas, histórias sentimentais, rejeitando, é claro, tudo quanto for crítica social ou política.
Em outras palavras, assassinará o cinema brasileiro, atualmente numa boa fase, num paradoxo de fundo moral, pois os filmes americanos dominadores das salas de cinema mostrarão histórias sem censura – exceto se for também criado filtro, como diz Bolsonaro, para os filmes estrangeiros.
Isso marcará o fim do cinema brasileiro? Claro que não! Os bons roteiristas e os bons realizadores farão seus filmes na Netflix ou na França, nos Estados Unidos ou na Itália. Será, porém sacrificada, no Brasil, toda uma nova geração de cineastas livres e independentes, enquanto surgirão produtores e cineastas de extrema direita. O exílio de roteiristas, realizadores e atores – que aconteceu na Alemanha nazista, na Itália, Espanha, Portugal fascistas e na União Soviética comunista – não deixará de acontecer no Brasil fascista.
Evidentemente, tudo poderia ser muito pior se vivêssemos antes da atual revolução tecnológica, que circunscreveria toda criação artística às salas de cinema e teatro. Não é mais o caso, os tempos são outros, Será mais difícil e mais custoso, mas os produtores brasileiros acharão sempre uma maneira de tornar visíveis seus filmes para os brasileiros, pela televisão a cabo, pela internet e nos celulares, com o apoio da indústria cinematográfica e da comunidade internacional. (Publicado também no Observatório da Imprensa)***
Rui Martinsé jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Foi criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
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