Rio de Janeiro, 22 de Dezembro de 2024

Bolsonaro e as heranças da ditadura

Arquivado em:
Terça, 05 de Outubro de 2021 às 07:25, por: CdB

 

Os antigos esquadrões da morte que haviam sido incorporados aos Doi-Codis, com o fim do regime militar deram origem às milícias, que elegeram vereador um tenente quase expulso do Exército em 1990 e dois anos depois o colocaram na Câmara dos Deputados e até hoje se constituem na principal base eleitoral da família Bolsonaro.

Por Jorge Gregory – de Brasília

Na semana que passou, por recomendação de Ivan Seixas, nosso convidado no Roda de Conversa, assisti ao documentário Cidadão Boilesen. A produção de Chaim Litewski e Pedro Asbeg, desvenda-nos a história de uma das figuras mais sombrias do período militar, o empresário Henning Albert Boilesen. dinamarquês naturalizado brasileiro, presidente da Ultragás e de ascensão empresarial duvidosa. Tal personagem não só era ideologicamente um reacionário fascista de carteirinha como também um sujeito perverso e sádico.
bolso.jpg
Até hoje se constituem na principal base eleitoral da família Bolsonaro
Boilesen, usando de sua influência no meio empresarial à época, se prestou ao papel de arrecadador de fundos para a Operação Bandeirantes, Oban, que daria origem em todo o país aos tenebrosos Doi-Codis, que perseguiram, torturaram e assassinaram inúmeros opositores do regime militar. Mas como não era apenas um reacionário, seu sadismo e perversidade o levaram também a participar pessoalmente das sessões de tortura. Fornecia também equipamentos para essas práticas e um dos mais usados ficou conhecido como “pianola de Boilesen”, que era o aparelho de choque elétrico. A Oban, implantada em 1969, foi uma estrutura paramilitar, ou seja, às margens da legalidade, organizada pelo próprio Estado. Para sua estruturação foram mobilizados elementos das Forças Armadas, que comandavam, e elementos da Polícia Federal e das polícias civil e militar de São Paulo, que se encarregavam do trabalho mais sujo. O núcleo mais importante da parte operativa advinha da Divisão Estadual de Investigações Criminais da Polícia Civil, a qual já possuía vasta experiência na prática de tortura e extermínio que seriam incorporadas às atividades da Oban e posteriormente aos Doi-Codis. Resumindo, o aparato repressivo incorporou os famosos esquadrões da morte que se formaram nas estruturas de segurança de São Paulo e do Rio de Janeiro nos finais dos anos 50 e década de 60. O mesmo modelo de organização foi reproduzido em todos os Estados. A prática de tortura e extermínio não foi a única prática que a repressão política incorporou destes grupos oriundos das polícias estaduais. As ações ao arrepio da lei, que exigiam certa infraestrutura, eram financiadas por contribuições de empresários que formavam a “caixinha” da corporação e o que sobrava na tal “caixinha” era distribuído entre os agentes. É verdade que parte desses empresários contribuíam em razão da convicção de que grupos de extermínio eram necessários para combater a marginalidade, mas a grande maioria participava por ser coagida. Na verdade, uma prática muito comum das pequenas máfias e gangues norte-americanas cobrando taxa de proteção que comumente vemos nos filmes hollywoodianos, mas que no Brasil é tradição de parcela da própria polícia.

Operação Bandeirantes

Tanto a Operação Bandeirantes como os Doi-CODIs, nesses mesmos moldes, passaram a fazer arrecadação junto ao empresariado para combater agora não os bandidos, mas sim os que eles chamavam de “terroristas”, ou seja, todo e qualquer indivíduo que se opusesse ao regime. Os achacados agora não eram o dono da loja de armarinhos ou o proprietário da quitanda do bairro, mas a fina nata do empresariado. A arrecadação se tornava ainda mais gorda, visto que alguns empresários, como Henning Boilesen, se prestavam de bom grado ao papel de organizadores e arrecadadores. O dinheiro arrecadado, mais do que financiar as operações, servia de premiação aos envolvidos pelas ações efetuadas, o que explica a voracidade por prender, torturar e matar. Com a transição à democracia as agências do Doi-Codi foram desmobilizadas, os militares envolvidos voltaram para os quartéis e os agentes policiais, civis e militares, retornaram às suas corporações. Obviamente não retornaram para se comportar como agentes públicos exemplares. Retomaram as velhas práticas de coação e extermínio elegendo novamente a proteção contra a “bandidagem” como pretexto para extorquir pequenos empresários. Se tais grupos forneceram aos militares as técnicas de tortura e extermínio, estes lhes forneceram vasto ensinamento de organização. Assim, os antigos esquadrões da morte que haviam sido incorporados aos Doi-Codis, com o fim do regime militar deram origem às milícias, que no Rio de Janeiro adquiriram a característica de ação territorializada, disputando o controle das periferias com o narcotráfico. Agora, em vez de torturar e exterminar potenciais “terroristas comunistas”, o alvo passou a ser principalmente jovens negros das periferias, potenciais “marginais”, segundo a elite branca reacionária. A ligação entre militares e tais grupos dos aparatos de segurança não se extinguiu totalmente com o fim da ditadura, em especial no Rio de Janeiro. As milícias elegeram vereador um tenente quase expulso do Exército em 1990 e dois anos depois o colocaram na Câmara dos Deputados. Até hoje se constituem na principal base eleitoral da família Bolsonaro. Mas, ao que tudo indica, estas milícias estão ávidas por restaurar os aparelhos de repressão de combate à “ameaça vermelha”, pois certamente a extorsão de grandes empresários em nome do Estado rende muito mais do que achacar pequenos comerciantes nas periferias, ou ficar ganhando lanchinho em panificadoras e quitandas. Não fosse a ação firme dos governadores, teriam se lançado abertamente na tentativa de golpe convocada por Bolsonaro no dia 7 de Setembro.

A CPI

Mas o assustador não é somente a existência das milícias. Especialmente a CPI tem nos revelado a existência de empresários que não se contentam em ser somente reacionários, mas financiam e participam ativamente de ações golpistas, não se podendo duvidar que financiem até mesmo as milícias. Quem não viu, ainda na campanha eleitoral, Luciano Hang obrigar seus funcionários a se reunir antes do trabalho e cantar o Hino Nacional, o que ele chamava de momento cívico. O que não dizer dos donos da Prevent Senior que, além de promover experimentações em humanos em cumplicidade com o governo, nos moldes nazistas, obrigavam seus servidores a cantar com a mão no peito um hino que soa fascista? Ou então, o dono da rede Atacadão, que tem obrigado seus funcionários a trabalhar com jaquetas de camuflagem do Exército nos dias 29 de março, em comemoração ao golpe de 64? Tais práticas não só se constituem em assédio moral, mas, acima de tudo, são atos fascistas. Assim como era comum se ver veículos da Ultragás e outras empresas participando e dando apoio nas ações da Oban, inúmeros veículos com a logo da Havan nas manifestações do dia 7 foram vistos. Tais empresários que financiam atos golpistas, se não patrocinam hoje as milícias, com certeza não titubeariam em patrocinar aparelhos de repressão como Boilesen e outros fizeram nos anos sombrios da ditadura. Talvez até mesmo fizessem questão em participar das sessões de tortura, como o fez o empresário dinamarquês fascista. Tais reflexões nos levam a crer que os ratos da ditadura saíram do esgoto e conspiram livres e impunes na sociedade para reeditar a ditadura militar. Levam também a pensar sobre a importância de se ter preservado os campos de concentração nazistas para que o mundo, a Europa e em especial a Alemanha não se esquecesse das atrocidades do regime comandado por Hitler. O atual momento vivido no Brasil demanda que a sociedade tenha pleno conhecimento das monstruosidades praticadas pelo regime militar e seus apoiadores, mandando os ratos fascistas, que se reproduzem à luz do dia, de volta aos esgotos de onde nunca deveriam ter saído. Nesse sentido, a luta empreendida pelos jornalistas Ivan Seixas e Moacir Oliveira Filho pelo tombamento da antiga sede da Operação Bandeirantes e Doi-Codi paulista, não é uma questão secundária diante do ressurgimento da onda fascista que atormenta o Brasil, mas merece total apoio de todas e todos os democratas deste país.

Jorge Gregory, é jornalista e professor universitário, trabalhou no Ministério da Educação (MEC).

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

Edições digital e impressa
 
 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo