Parte da população continua sem casa, indenização e sob constante ameaça de novos desastres. “Não durmo. Começou a chover não durmo”, lamenta vítima da tragédia que completa um ano.
Por Redação, com Brasil de Fato - de São Paulo
“Nós estamos há um ano sem respostas, por quanto tempo vamos ter que esperar por isso?”, a pergunta é do pedreiro Denis Milanez, que perdeu a casa durante as chuvas que atingiram a cidade de São Sebastião, litoral norte de São Paulo, em 19 de fevereiro de 2023.
A cidade recebeu o maior volume de chuvas na história do país, com 680 milímetros de precipitação em apenas 24 horas, que deixaram um rastro de deslizamentos de terra em quase toda sua costa, 64 vítimas fatais e mais de mil pessoas ficaram desabrigadas. Um ano depois, moradores temem uma nova tragédia anunciada e lutam por moradia digna.
A prefeitura de São Sebastião estima que até 3,5 mil famílias viviam em áreas de risco em agosto de 2023. Cerca de 200 optaram pelo “recâmbio social” – no qual a prefeitura paga uma passagem de volta para a terra natal. Outras 250 famílias foram abrigadas no conjunto de Quaresmeira, de Bertioga (SP), segundo o portal G1.
Cerca de 100 famílias recebiam “aluguel social” no valor de um salário mínimo. Outras 58 famílias estão na chamada Vila de Passagem, local provisório construído, em maio de 2023, na Topolândia, próximo ao centro da cidade. É o caso de Denis Milanez, que depois de passar por vários abrigos, está há mais de nove meses no quarto, cozinha e banheiro de aproximadamente 18 metros quadrados. Até perderem tudo, ele, a esposa e a filha de quatro anos moravam na Vila Esquimó, no bairro de Juquehy, cerca de uma hora de carro do centro da cidade.
– Não sobrou nada da minha casa, perdi tudo, toda minha estrutura e os órgãos competentes também não davam atenção o suficiente, então entrei com uma ação e consegui o laudo da minha casa. Após essa briga toda com o laudo, trouxeram a gente para esse cubículo, onde a temperatura é alta e muito apertado – afirma.
Junto a outros moradores, Milanez denuncia que as moradias, que eram para ser provisórias, e o espaço administrado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), com apoio da Prefeitura de São Sebastião, estão em péssimas condições de manutenção, como as caixas d’água e esgoto. Algumas crianças passaram a apresentar problemas de saúde.
– A gente fica se coçando, embola os braços e em minhas filhas também começaram a aparecer manchas. Eu levei ela no médico e o médico falou que poderia ser da água, porque a água não estava sendo bem tratada – conta Edlaine Anunciação, que vive em um dos quartos da Vila de Passagem. Diarista, ela morava com as filhas pequenas, de dois e cinco anos, e o marido também na Vila do Esquimó em Juquehy.
Atraso do governo Tarcísio
Tanto Edlaine como Milanez estão aguardando as moradias populares anunciadas pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), desde o início da tragédia. Após seis meses de atraso, 186 apartamentos de 44 metros quadrados da CDHU foram entregues no bairro de Maresias para os atingidos que estavam em Bertioga, no dia 3 de fevereiro. Já os outros 518 apartamentos de 41 metros quadrados estão previstos para serem entregues na Baleia Verde, na costa sul de São Sebastião, nesta segunda-feira, de acordo com nota divulgada pela pasta na última semana.
Entretanto, de acordo com os moradores, ainda não há nenhuma previsão de saída da Vila de Passagem ou direcionamento para as unidades habitacionais finalizadas. “Tem muitas mães aqui com crise de ansiedade. Porque um fala uma coisa, vem outro falar algo. A gente fica com esperança e acabamos passando mal. Só Jesus na nossa vida… eu mesma durmo e acordo pensando na casa nova, num ambiente melhor tanto pra mim, como para minhas filhas e para as outras famílias. Isso não é justo, eles deixam a gente aqui sem resposta, uma injustiça isso!”, desabafa Edlaine.
Inicialmente a gestão de Tarcísio anunciou que a entrega dessas 704 habitações seriam em agosto do ano passado, mas acabou mudando o prazo para outubro e, em seguida, para dezembro. As unidades de Maresias são de alvenaria, mas o conjunto de imóveis da Baleia Verde utiliza estrutura de madeira e foi feito por meio da tecnologia de construção pré-montada, também alvo de críticas dos moradores, que questionam a qualidade dos imóveis para a região que sofre com grande incidência de chuvas.
– O chão está rachando – denuncia Milanez que trabalhou na colocação de piso dos apartamentos localizados no bairro Baleia Verde. Segundo ele, o local pode enfrentar uma nova tragédia. “Vamos perder nossos entes queridos e não haverá medidas protetivas”. Em junho de 2023, um dos canteiros de obras de moradia na Baleia Verde ficou alagado por conta da chuva.
A defensora pública que atua em São Sebastião, Patrícia Oliveira, relata que o terreno é pantanoso e encharca, diante disso foi feito um alteamento do terreno da construção para que os apartamentos não sejam alagados. Ainda assim, de acordo com ela, a preocupação com relação aos alagamentos das ruas do entorno continua. “Se a via estiver alagada as pessoas não vão conseguir sair. Há também alguns relatos de que as obras em si teriam estruturalmente impactado outras residências próximas com os batentes.”
Segundo informações obtidas pela defensora, os imóveis seriam custeados pelos próprios atingidos pela tragédia. “São apartamentos que têm um subsídio pela questão da vulnerabilidade, mas são parcelas que comprometem ali em torno de 20% da renda familiar, por um período de 30 anos”. Há com isso uma resistência da população local, uma vez que muitos sempre pagaram Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU). “Porque eles teriam que custear um financiamento tão extenso, já que houve no mínimo uma negligência da prefeitura em implementar medidas estruturais ali na região?”, questiona Patrícia.
A reportagem questionou a CDHU sobre a forma de obtenção dos imóveis, mas não obteve nenhum retorno. Em nota publicada pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação do governo estadual, o órgão diz que “os moradores do novo conjunto habitacional de Maresias assinaram um termo de permissão de uso não oneroso, atendendo a um compromisso do governador de que não haverá cobrança de mensalidades para famílias inscritas no cadastro da CDHU”.
A companhia afirma ainda que o direito de não pagar as mensalidades será concedido apenas às famílias que habitavam e perderam suas construções na tragédia, se eles não possuírem outros imóveis. Nesse caso, eles terão de residir nos apartamentos por no mínimo 18 meses, sem a possibilidade de venda ou aluguel dos apartamentos no período.
Vila Sahy
A Vila Sahy, área de encosta da cidade que concentrou o maior número de mortes, tem sido o foco do governo do estado, mas a gestão tem recebido críticas por parte dos moradores. Às vésperas das festas de final de ano, no final de novembro do ano passado, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) chegou a pedir o despejo e remoção compulsória de 893 imóveis do bairro. O processo se baseou em um estudo financiado pela ONG Gerando Falcões com dinheiro arrecadado em nome das vítimas que concluiu que 70% das casas da região deveriam ser desocupadas.
De acordo com a Defensoria Pública, o mapeamento inicial indicava necessidade de desocupação de aproximadamente 400 residências na Vila do Sahy, que eram aquelas mais próximas da área de deslizamento de pessoas já abrigadas provisoriamente.
Após pressão dos moradores, atuação da Defensoria Pública e Ministério Público, que contestaram o laudo e o perímetro indicado para as demolições, a Justiça solicitou a revisão dos imóveis e exigiu a apresentação de um laudo caso a caso. Mas, em dezembro, o governo de São Paulo afirmou que desistiu da ação em janeiro de 2024. No mesmo mês, o vice-governador de São Paulo, Felício Ramuth, chegou a classificar os moradores da Vila Sahy como “invasores” em entrevista à TV Vanguarda, afiliada à Globo.
Consolidado há 30 anos, o bairro é urbanizado e fica do lado da Rodovia Rio-Santos, onde, próximo a praia, ficam os bairros Barra do Sahy e Baleia, que concentram os imóveis de maior poder aquisitivo do município. Leandro dos Santos Silva tem 30 anos e foi criado pelos pais, junto com seis irmãos na Vila. Ele denuncia o que define como “racismo ambiental”.
– Eles usam uma desculpa que nós somos invasores, que nós invadimos. Só que o mesmo papel de posse que nós temos é o mesmo que o bilionário do outro lado na Baleia tem, é o mesmo papel de posse. Só que para eles é isso. Nós somos humildes, nós não temos direito a nada. Agora temos que lutar e continuar lutando até o fim – pontua. Ele é autônomo, educador de capoeira no bairro e com outros moradores da região formou o Comitê da União dos Atingidos para tentar diálogo com o poder público e garantir os direitos da comunidade.
Valdice Maria de Jesus, hoje aposentada, que trabalhava como diarista na Baleia, mora há mais de 20 anos na Vila e afirma que seus deveres nunca deixaram de ser cobrados. “Vinte anos trabalhando duro. Porque aqui todo mundo trabalhou duro para poder construir, todo mundo. A gente paga esgoto, luz, IPTU, tudo isso a gente paga. E temos tudo aí, a gente tem como provar. Não é justo o que eles põem lá, chega lá dentro de um apartamento desses ‘tamanhozinhos'”, afirma.
Outros bairros atingidos em São Sebastião
A defensora pública Patrícia Oliveira, que acompanha o caso desde o início da tragédia, ressalta ainda que apesar da Vila Sahy estar recebendo maior atenção, há outros bairros com maior risco. “Nós temos diversos bairros do entorno até mais vulneráveis não só do ponto de vista do risco, mas também do ponto de vista social e que ainda não tiveram o mesmo olhar como, por exemplo, Pantanal, Esquimó, Tropicanga. E nesse contexto, essas pessoas voltaram para casas nesses locais, porque a casa não estava comprometida, mas não deixa de ser uma área de risco”, alerta.
As obras de contenção das encostas começaram apenas em outubro, mas não têm previsão de conclusão. Dona Consuelo é uma dessas moradoras. Caiçara de São Sebastião, vive com o marido, filha e neto em Boiçucanga. Sem alternativa de moradia, teve que voltar para o imóvel próximo à área de risco e teme outra tragédia.
– Não durmo. Começou a chover não durmo, já tem uma criança autista epiléptica que eu tenho medo de dar epilepsia nela, ela toma quatro tipos de remédio. E também aí se chover eu não durmo mesmo. Aí eu vejo o dia amanhecer, o dia todo eu vejo escurecer – conta ela que também não recebeu informações sobre a previsão de moradia ou prevenção de danos no local pelo poder público.
Ao lado da sua casa, está em construção umas das obras de contenção, que iniciaram no município há quatros meses, mas não têm previsão de conclusão.
Tragédia-crime
A Defesa Civil e Ministério Público de São Paulo chegaram a avisar sobre o alto risco das chuvas, como explica a defensora pública Patrícia Oliveira.
– Desde 2006 e depois em 2018, já havia um mapeamento de 21 áreas de risco aqui do município, através do Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR). E nesse plano já havia a indicação de vários locais onde seriam necessárias medidas estruturais e não estruturais para mitigação desses riscos. Inclusive a Vila Sahy, que foi o local que teve mais mortes. Mas não só, todas as áreas que foram atingidas também estão contempladas nesse mapeamento de 2018. De lá para cá algumas medidas foram tomadas, mas medidas pontuais em termos estruturais, o que não foi algo significativo para impedir a ampliação desse risco na região.
Desde 2013, a prefeitura de São Sebastião recebeu alertas sobre os riscos de deslizamentos e enchentes no município. O primeiro alerta veio em 2013, quando um estudo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sobre expansão das áreas de risco, usou o município de São Sebastião como exemplo, detalhando os riscos de deslizamentos na região. Cinco anos depois, em 2018, um levantamento do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) indicou 52 áreas que corriam riscos de deslizamentos. Entre as regiões apontadas pelo órgão, estava São Sebastião.
Em 2020, o Ministério Público Estadual de São Paulo, após estudo na região, concluiu que a Vila Sahy, região mais prejudicada pelos deslizamentos e enchentes, seria “uma verdadeira tragédia anunciada”.
– A prefeitura, vamos dizer assim, sempre falava que iam tirar algumas pessoas daqui, mas nunca fizeram casa. Nunca teve um planejamento para fazer casas para as pessoas. Foi passando de prefeito para prefeito até chegar onde chegou. Então quando a gente fala ‘tragédia-crime’ é o que eu acho que é: uma ‘tragédia-crime’. Porque isso não deveria ter acontecido. Essas pessoas que a gente perdeu aqui dentro não era pra ter acontecido isso, se eles tivessem feito isso antes. Desde 2018 que era para ter sido reurbanizado – relembra a autônoma Rosilene Santos, que mora há mais de 30 anos na Vila Sahy e criou os seis filhos na região.
Entendendo que há essas falhas estruturais de décadas do município em fornecer uma moradia segura a essas famílias, a Defensoria Pública, junto ao MP, também ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) em dezembro de 2023 para requerer que houvesse então uma responsabilidade do município, seja pelos danos morais, psicológicos e materiais pelas perdas que as famílias tiveram com relação aos seus familiares e pertences, que se perderam nos alagamentos constantes. A ação está em andamento e aguarda a decisão do juiz com relação aos pedidos de indenização.
– Temos uma rodovia que separa os grandes condomínios dos morros. Ali não há estrutura básica mínima e nunca houve um investimento expressivo para que isso se regularizasse, então esse descaso com essa população agravou nitidamente o risco, a gente fala em racismo ambiental – diz Patrícia.
A ação mapeou o cenário a partir de depoimentos das vítimas para que houvesse elementos para permitir uma análise com relação à indenização em favor das vítimas. “A partir disso o juiz vai decidir percentuais de indenização, se há o dever de indenizar e se essas famílias podem se habilitar posteriormente para receber as indenizações assim que deferido”, conclui.
Outro lado
O Brasil de Fato tentou contato com a prefeitura, Defesa Civil do município e CDHU para saber quais pessoas iriam para os conjuntos e quais os critérios de prioridades, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem. Assim como não houve retorno da atualização dos dados de moradores em áreas de risco e informações de se e quando haverá a atualização de um plano para contenção de danos em áreas de risco junto com a população.
De acordo com os moradores da Vila de Passagem, local provisório e precário de moradia, não há previsão de mudança, por enquanto. A Defensoria Pública e Ministério Publico propuseram na ação a criação de um comitê permanente paritário, em que haja a presença dos moradores para que eles possam construir em conjunto as soluções para a região. Mas também não houve retorno dos entes municipais e estaduais quanto a essa questão.