Em sua edição de nº 2700 (15/10/2021), a IstoÉ ousou publicar uma capa com o presidente Bolsonaro roubando o look de Hitler: o inconfundível bigodinho, os cabelos na testa e o olhar de fazer medo. Tal capa foi programada para coincidir com as conclusões da CPI da Covid, que considerou Bolsonaro culpado por uma série de graves ou gravíssimos crimes.Não é a primeira vez que se faz referência a Adolf Hitler,no caso de crimes coletivos ou crime hediondo.
Por Rui Martins
Em junho do ano passado, os jornais franceses e belgas reproduziram uma proposta de edição de capa para a revista Time, na qual, nos poucos traços em preto do artista belga Luc Descheemaeker sobre um fundo branco, aparecia uma franja de cabelo e, imitando o bigode, havia uma pequena caricatura do então presidente Donald Trump.
Apesar desses traços sumários, não havia nenhuma dúvida – era Adolf Hitler. Uma legenda dizia: Racismo é o maior dos vírus. Esse desenho viralizou nas redes sociais à época porque queria dizer que o nazista Trump matou o negro George Floyd.
Na própria Alemanha, a revista Stern, em agosto de 2017, publicou uma capa violenta contra Trump, na qual ele se cobria com a bandeira estadunidense e fazia o gesto de saudação nazista Heil, Hitler!.
A chamada era a expressão Sua Luta, alusão ao título da autobiografia de Hitler, Mein Kampf. Logo abaixo, na forma de subtítulo, a explicação: Neonazistas, Ku-Klux-Klan, racismo: como Donald Trump excita o ódio nos Estados Unidos.
A capa tinha ligação com os acontecimentos de Charlottesville, EUA, onde supremacistas brancos, neonazistas e membros do KKK quebraram o pau com manifestantes antirracistas.
Uma variante brasileira da IstoÉ poderia ser (talvez a iconografia da revista já tenha proposto) um Bolsonaro envolto na bandeira brasileira fazendo a saudação nazista.
Não consegui saber como foram as reações dos estadunidenses a tal identificação de Trump, republicano de extrema-direita, com o líder nazista e genocida alemão. Embora tenha procurado, não vi críticas por mau gosto na criação da capa da Stern e nem no desenho do artista belga, ambos comparando o ex-presidente ao criminoso nazista.
É bom lembrar ser proibida, na Alemanha, a reprodução de tudo quanto se refira ao período hitlerista. Só há exceções no combate ao nazismo, nas artes, nas ciências e no ensino nas escolas. A capa da Stern foi uma dessas exceções.
Teria a IstoÉ exagerado? Ora, a campanha eleitoral e mesmo o slogan do governo Bolsonaro são de clara inspiração nazista. O Brasil acima de tudo nada mais é do que uma tradução/adaptação literal de Deutschland uber alles.
As declarações de cunho nazista do clã Bolsonaro estão em toda a imprensa. A política contrária às vacinas e a promoção de remédios ineficazes que não previnem nem curam logo fizeram surgir na imprensa (e mesmo nos cartazes anti-Bolsonaro) a qualificação de genocida, às vezes acompanhada da expressão governo nazifascista.
Exceto pelas investigações contra jornalistas e cartunistas, realizadas a mando do ex-ministro da Justiça e pastor evangélico André Mendonça e que não tiveram consequências jurídicas, nada houve da parte do governo Bolsonaro contra a assimilação do seu governo, pela imprensa, da imagem, da representação e do governo hitlerista. Mas, é difícil negar que existam pontos de convergência (inclusive no culto às armas) do bolsonarismo com o hitlerismo.
Por isso, imagino a coerente decisão do diretor-editorial Carlos José Marques e seus editores de ver na figura do Bolsonaro traços e comportamentos do líder nazista alemão, colocando como bigodinho a palavra genocida, referentes aos mais de 600 mil mortos (na verdade seriam muito mais) e como título As práticas abomináveis do mercador da morte.
Só não entendo a reação de alguns colegas jornalistas, mesmo um tanto ofensiva, pela publicação da montagem Bolso-Hitler na capa da revista.
Se mesmo na Alemanha, a Stern compara Trump com Hitler, se os jornais belgas e franceses publicaram a figura gráfica de um Trump nazista, a imprensa do Brasil, onde existe uma matéria-prima mais comprometida com genocídio que nos EUA de Trump, não se pode publicar? É mau gosto?
A avaliação de tão violenta reação se complica quando seus autores se declaram judeus e se referem a uma espécie de vulgarização do Holocausto. Ou as 600 mil mortes ocorridas no Brasil, que muitos acham ser um milhão, não podem ser comparadas com o genocídio praticado por Hitler? Ou, será, e parece ser isto, por esse tipo de comparação prejudicar a imagem do Bolsonaro?
Neste caso, talvez valha uma referência também aos crimes ocorridos na época de Hitler. Comentando as atrocidades cometidas, a filósofa, politóloga e escritora judia Hannah Arendt aprofundou o tema da banalidade do mal, impressionada pela reação de Adolf Eichmann à exposição dos seus crimes no processo contra ele aberto em Jerusalém.
Talvez num processo de Bolsonaro surja igualmente esse aspecto surpreendente do mal. Em todo caso, é sabido que Bolsonaro evitou o debate nas eleições, para não mostrar às claras seu pensamento. Porém, os que convivem ou o têm apoiado durante esses quase três anos, sabem muito bem quais são suas ideias e porque tantos o qualificam de nazifascista.
Dezenas de cartunistas produziram charges semelhantes à do seu colega Aroeira, tendo tal avacalhação ajudado a detonar o balão de ensaio visando ao restabelecimento da censura
É o caso dos líderes evangélicos, mas igualmente de outros líderes que apoiam Bolsonaro e se inflamam contra os jornalistas não participantes das redes sociais financiadas em parte pelo governo, num plano de controle da informação, que a mesma IstoÉ denunciou sobre o Goebbels do Planalto (Fábio Wajngarten).
Vivemos um momento histórico decisivo, no qual o Senado tem a coragem de enfrentar o próprio presidente com a inculpação por crime contra a humanidade. Histórico, mas perigoso, no qual não se pode ignorar o imperativo de defendermos a liberdade de informação, como já foi tema de outro artigo meu.
por Rui Martins
Não é necessário dar os nomes dos ofendidos com a capa, mas é importante citar esta frase englobando tudo, do jornalista e comentarista Ricardo Kertzman, da IstoÉ:
"O (des)governo Bolsonaro não é nazista e o mito não é Hitler. Contudo, ambos adotam práticas e posturas semelhantes ao nazismo, sim, senhor!Eu mesmo já escrevi a respeito, e nenhum judeu, à época, me encheu o saco".
Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
Direto da Redaçãoé um fórum de debates publicado no jornal Correio do Brasil pelo jornalistaRui Martins