A terra indígena não é só um espaço físico, um bem material, vista pelo agronegócio e as mineradoras apenas como valor de mercado. Homenagem a Wilson Pinheiro de Souza, assassinado na Amazònia.
Por José Ribamar Bessa Freire, de Niterói
Por sugestão das Forças Amadas, o 5º Encontro dos EGC foi, então, transferido para a plataforma da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), onde fiz um resumo da palestra sobre “O lugar dos povos indígenas na política cultural do Brasil”, devendo desenvolver o tema de forma ampla no início de outubro. Não é possível fazer uma discussão séria sobre políticas culturais, deixando os índios de fora. Mas qual é o lugar do Wilsão nessa história se ele não é indígena?
Um episódio vivido por Wilsão com os Apurinã, do qual eu participei, serviu para introduzir o tema da demarcação dos territórios indígenas e relacioná-los com a cultura. A terra indígena não é só um espaço físico, um bem material, vista pelo agronegócio e as mineradoras apenas como valor de mercado. Ela é muito mais do que isso, é um bem cultural, como ficou evidente no diálogo entre índios e trabalhadores rurais, ocorrido no dia 19 de abril de 1979, um ano e três meses antes do assassinato do Wilsão.
Foi assim. Nos anos 1970, o grileiro paranaense João Sorbile, apelidado de “Cabeça Branca”, aproveitou a longa temporada de caça dos índios Apurinã e com a conivência do Cartório de Boca do Acre (AM) loteou a terra indígena, vendendo os lotes para colonos vindos do Paraná. Quando os índios retornaram da caçada encontraram lá outros “donos”, que exibiam recibos do pagamento feito ao grileiro. Armou-se um conflito feio entre índios e posseiros.
Para lutar contra o grileiro em vez de brigar entre si, índios e posseiros se reuniram no Teatro de Arena do SESC, em Rio Branco, com a participação de lideranças de várias entidades, entre as quais Wilson Pinheiro de Souza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia e Chico Mendes, ex-secretário do sindicato que se elegera vereador em Xapuri. Daí nasceu o Comitê Índios x Posseiros, berço do movimento “Aliança dos Povos da Floresta”.
Lugar de memória
Na ocasião, foi encenada a peça “A Grilagem do Cabeça” dirigida por Vera Froes do Grupo Testa, descrevendo toda a trama sórdida. Depois do espetáculo Wilsão manifestou durante a reunião que não entendia porque os índios não se sindicalizavam.
Numa intervenção pública perguntamos a ele:
- Você aceitaria trocar a terra onde está, em Brasileia, por uma terra fértil do mesmo tamanho aqui perto do mercado consumidor?
Wilsão respondeu:
- Quem não aceitaria? A distância de lá para cá é de mais 200 km por uma estrada intransitável cheia de lama e buracos.
A mesma pergunta foi dirigida a Manuel Apurinã ali presente. Ele disse que não trocaria nem por um terreno dez vezes maior. É que para ele a terra era um lugar de memória, um espaço sagrado, onde estavam enterrados os seus mortos, com numerosas referências às narrativas míticas. Sem ela, a cultura Apurinã se esfacelava.
Manuel cantou, então, para uma plateia silenciosa e reverente, uma canção em língua Apurinã. Embora desconhecesse a língua, Wilsão entendeu tudo, percebeu que estava diante de outra cultura, com sua forma específica de ver e lidar com a terra. Manuel disse algo assim como “não é a terra que nos pertence, somos nós que pertencemos à terra. Por isso não podemos sair de lá”. Na versão Guarani, sem tekoá (aldeia) não há tekó (cultura). É no território que eles cultivam o nhanderekó (o “nosso jeito de viver”), que dá conta das relações internas pautadas pela ética do parentesco e pelo ideal de boa convivência.
Forças Amadas
Portanto, quando o governo Bolsonaro impede a demarcação das terras indígenas, tal medida, que contraria a Constituição, golpeia culturas milenares e destrói línguas, saberes tradicionais, arte, música, literatura oral. A Funai bolsonarista editou uma instrução normativa que permite o registro de propriedades privadas sobrepostas a terras indígenas em processo de homologação, oficializando assim a grilagem. A juíza federal do Pará acaba de suspender tal excrecência,
Durante quase cinco séculos os índios perderam mais de 87% de seus territórios e com eles suas culturas, que são vitais não apenas para os povos originários, mas para o Brasil e para a humanidade. Por isso, a Constituição de 1988 repactuou: o que os povos ameríndios perderam, perdido está, mas o Estado garante daqui em diante o usufruto das terras que permaneceram ocupadas.
A atual política de um governo que nega aos índios, em plena pandemia, o acesso à água potável, mostra que esse pacto está sendo violado. A garantia da terra aos povos indígenas, como assegura a Constituição, não é apenas uma medida no campo da economia, mas faz parte da própria política cultural. É isso que, entre outras questões, os invasores da reunião não queriam que fosse dito e discutido.
Wilsão era um homem da paz. Liderou o movimento Mutirão contra a jagunçada, que levou centenas de posseiros a tomar dezenas de rifles dos pistoleiros contratados por grileiros, entregando as armas ao Exército. Wilsão foi assassinado, aos 47 anos, com um tiro pelas costas, mas parece que continua incomodando. E nós com ele. Três vivas aos Estados Gerais da Cultura, à Escola Superior da Paz e às Forças Amadas.
Obs: Créditos: fotos de Milton Guran, Nietta Monte, entre outros.
P.S. – Nesta segunda (14), às 21 hrs, a Revista Xapuri organiza a Live Solidária em homenagem à Sergio Ricardo e Thiago de Mello, mediada por Andrea Matos, com participação de Renato Aroeira e as canções imperdíveis na voz de Sabah Moraes. Será lembrado o show que Sérgio Ricardo, falecido recentemente, apresentou no Teatro Amazonas com o poeta Thiago de Melo, em cronica publicada pela revista Xapuri: - Te entrega, Corisco! - Eu não me entrego não. Não me entrego a tenente, não me entrego a capitão...