A pressão da classe média por sucesso molda destinos, sufoca sonhos e empurra gerações para vidas frustradas em nome de segurança e status.
Por Abraham B. Sicsú – de Brasília
Uma velha amiga, encontro inesperado. Cara triste, preocupada. Pergunto:
– O que aconteceu?
– Minha filha é uma irresponsável. Vai ter o terceiro filho.
– Parabéns, acho que é um motivo de alegria.
– Alegria, qual nada. Como a vida está hoje em dia, com os preços na hora da morte, como colocará as crianças numa boa escola, para passarem numa boa faculdade e garantir um bom emprego?
Fico assustado. Nem nasceu e a vida já tem que estar programada, organizada nos padrões que a sociedade burguesa acha adequados. Sem concessões, sem chance de optar por caminhos que as façam felizes.
Num aeroporto, um casal de amigos. Retornam ao país para umas breves “vacaciones”, um descanso merecido. Pergunto:
– Como está seu filho?
– Finalmente caiu na real, conseguindo ir adiante.
– O que aconteceu?
– O doido fez relações internacionais. Pensava que ia ser assessor do Primeiro Ministro? Nada de emprego. Finalmente entrou numa multinacional de informática e achou um caminho na vida. Até uma pós de engenharia de software está fazendo. Já lhe disse, pode ler suas “filosofias” nas horas vagas, mas na vida tem que ter sucesso, dedique-se à empresa e será recompensado.

Não é de hoje que a classe média “programa” a vida dos filhos. Os padrões são predefinidos e quase imutáveis. Todos têm que se adequar a eles sem mudar muito o rumo.
Na minha época, só havia três opções, medicina, engenharia e direito. Não tinha como discutir.
Lembro que fiz teste vocacional. Deu que o melhor para mim seria historiologia, o estudo da filosofia da história. Uma ciência que deve analisar e discutir a interpretação dos fatos históricos. Mas, não tive opção. Como era bom em matemática, tive que fazer engenharia. A pressão seria insuportável se não fizesse.
Nunca trabalhei como engenheiro. Não tinha a mínima vocação. Saindo pela direita, fui para a economia e para a gestão, na área de inovação. Verdade, acabei professor da Faculdade de Engenharia. Mas, dava uma disciplina que os alunos chamavam de “filosofia da engenharia”, Gestão da Inovação, uma grande discussão sobre os caminhos da humanidade, erros e acertos, e suas perspectivas futuras. Um desvio que, ao menos, me aproximou do que queria fazer. Estudar a História da humanidade e analisar suas reais potencialidades.
Hoje, também, surgem três opções no sonho dos genitores e influenciadores. Não tem como fugir muito delas. Medicina para ganhar muito dinheiro. Direito para fazer concursos públicos. Informática e suas variações para ter emprego garantido.
Grandes capitais
No fundo são opções para um modelo de mundo. Um mundo em que a concorrência sufoca as pessoas, atemoriza os que são de classe média, medos de não serem incluídos sempre que não atendam aos interesses dos grandes capitais.
Um mundo de “vencedores e perdedores”. Assim são taxados. Ninguém pode sair desse padrão em que o individualismo exacerbado é nota, se não dermos certo é por culpa exclusiva de nossas opções. Ou melhor, as opções que nos são impostas e não podemos recusar.
Surge um caminho alternativo a ser seguido e recomendado. Empreendedorismo. Inventou-se a idéia de que todos podem ser empreendedores. Esqueceu-se das lições dos velhos mestres que estudaram o assunto.
Schumpeter mostrou que empreendedores eram de uma classe especial, portanto para poucos que tivessem características muito específicas.
Eles tinham que acreditar muito numa idéia, ou seja, para eles era certeza que a exposição ao mercado da idéia em que apostavam era apenas uma questão de tempo, iria dar certo sem nenhuma dúvida. Segundo, deveriam estar convencidos de que enfrentar o risco não era problema, ou seja, estar muito dispostos de ir à concorrência e enfrentar todas as adversidades, como já disse, teria que dar certo a qualquer custo.
Como não existem tantos indivíduos com essas características, a balela de que todos podem ser empreendedores cai por terra. E aí se inventa uma nova lógica para justificar “todos empreendedores”.
Trabalhar sem patrão “aparente” é o caso. Qualquer um que se disponha a ter um trabalho sem carteira assinada ou patrão conhecido se define como empresário.
Todos os entregadores, todos os motoristas de aplicativo, todos os informais sem carteira assinada se consideram empreendedores. Um verdadeiro desastre. Frustrações à vista. Nada será como planejado.
Uber
Ando muito de Uber. Quase todas as semanas, várias vezes. Converso com os motoristas. Todos se dizem “empresários” e a maioria deles contam uma história.
Muitos formados, todos frustrados. Engenheiros, advogados, nutricionistas, dentistas, já me conduziram contando que tem a certeza de voltar ao seu campo, algum dia. Perguntados sobre o que o sonho do diploma representou na vida dizem que era um sonho família, quase uma imposição.
Hoje, as perspectivas de vida, objetivamente, se resumem em poder fazer a cota diária para retornar no dia seguinte à labuta exaustiva, sem muito mais a ganhar. Só resta sonhar para um dia abandonar este trabalho nada gratificante.
Fazer concurso é outro fetiche. Os ditos “empresários” vêem nesse mecanismo sua saída. Alguns estudam por aplicativos que dão o “bizu” para passarem. As dicas de pegadinhas que só eles e a multidão que acompanham esses aplicativos saberão. Acreditam nisso. Não conheci nenhum que efetivamente tenha conseguido um cargo público se preparando dessa maneira. Mas, é um sonho que exige sacrifícios e dizam sempre ter o apoio familiar.
A pressão dos pais e família é insuportável. A vida vira um martírio. Essa é a sina da grande maioria da classe média. Alguns jovens podem até dar certo, mas viverão vidas amarguradas, com rotinas estressantes, em atividades nas quais não têm nenhum interesse.
Uma sociedade de gente frustrada, como dizia a música, “gente que perde os filhos seus, mas mesmo assim não perde a fé em Deus.”
É o que resta. Fé.
Abraham B. Sicsú, é professor aposentado do Departamento de Engenharia de Produção da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e pesquisador aposentado da Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco).
As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil