Rio de Janeiro, 03 de Maio de 2025

Francisco e a arte: silêncio, não espetáculo

Explore a relação inovadora entre o papa Francisco e a arte, onde a beleza se torna uma linguagem ética, rompendo com a tradição do espetáculo.

Segunda, 21 de Abril de 2025 às 20:14, por: CdB

A relação entre a Igreja e a arte sempre foi ambígua, e durante séculos, a beleza serviu ao poder e a pintura funcionou como instrumento de doutrinação. O papa Francisco, morto nesta semana, rompeu com essa lógica de maneira profunda e silenciosa.

Por Marcello Maria Perongini – do Rio de Janeiro

Ao contrário de seus antecessores, o papa Francisco não construiu cúpulas nem encomendou monumentos, mas reposicionou a arte como linguagem ética, não como vitrine institucional.

Francisco e a arte: silêncio, não espetáculo | Nesta famosa pintura de Caravaggio, um feixe de luz corta a penumbra e acompanha o gesto silencioso de Cristo, que chama Mateus enquanto ele, ainda preso ao dinheiro sobre a mesa, aponta para si em espanto
Nesta famosa pintura de Caravaggio, um feixe de luz corta a penumbra e acompanha o gesto silencioso de Cristo, que chama Mateus enquanto ele, ainda preso ao dinheiro sobre a mesa, aponta para si em espanto

Sua atitude diante da Capela Sistina é emblemática. Cercado pelos corpos apocalípticos do Juízo Final de Michelangelo, não celebrou sua eleição com glória, mas com humildade. Falou de cruz, serviço e poeira. Compreendeu o que tantos papas ignoraram: que aquele afresco era uma denúncia. O Michelangelo que o pintou já não acreditava no aparato papal, mas na severidade humana de Cristo, um julgamento feito por um igual, não por um trono.

Em sintonia com seu homônimo de Assis, Francisco preferiu os gestos à grandiosidade. Em vez de glorificar o mármore, exaltou a renúncia. Em vez de elevar santos, devolveu à arte sua função de confronto. Museus, sob sua gestão, deixaram de ser salas de reverência e passaram a acolher migrantes, deficientes, jovens das periferias. A arte não era troféu. Era acesso.

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Essa mesma tensão entre poder e pobreza se revela na Basílica de Assis, que Francisco visitou diversas vezes. Construída em dois níveis, ela abriga, no andar superior, a glória visual dos afrescos de Giotto, e no inferior, a cripta onde repousa o corpo do santo. O papa argentino caminhou nesse espaço como quem entende que fé e forma não precisam competir, mas se corrigir mutuamente. A arquitetura franciscana, que cresce de baixo para cima, inspirava sua própria teologia visual.

Nada em seu papado foi casual, especialmente sua relação com a imagem. Francisco evitou deliberadamente transformar sua figura em símbolo. Recusou filtros, cenografias, adornos. Preferiu a contenção à projeção. Nenhum outro papa moderno foi tão fotografado e, ao mesmo tempo, tão pouco estetizado. Sua escolha não foi estética — foi política. Um contraponto calculado à espetacularização do poder religioso em tempos de algoritmos e marketing de santidade.

Caravaggio

Citou Caravaggio com precisão teológica e política. Viu em A Vocação de São Mateus o dilema moderno da fé: um olho em Deus, outro no dinheiro. E ali, como na sua própria trajetória, reconheceu a força de um chamado que não exige pureza, mas presença.

Ao evitar a estetização da própria figura, Francisco tornou-se o pontífice mais fotografado e o menos ornamental. Rompeu com o barroquismo da comunicação eclesiástica. Preferiu a carne ao bronze, o gesto à imagem. Sua arte foi a da contenção.

E nisso, talvez, esteja sua revolução.

Íntegra:

Francisco e a arte: da iconografia do poder à estética da compaixão

https://artitalia.com.br/2025/04/21/papa-francisco-estetica-da-compaixao/

Marcello Maria Perongini é pesquisador e professor de história da arte, com foco na interseção entre arte, tecnologia e sociedade.

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