Quando me deparo com o esmero dos liberais em separar indicações “políticas” dos apontamentos “técnicos”, sou espicaçado pela tentação de atribuir tal distinção a um distúrbio cognitivo.
Por Luiz Gonzaga Belluzzo – de Brasília
Em sua edição de 31 de março, a Folha de S. Paulo estampou uma manchete de primeira página para acusar a queda de 24% nos lucros das empresas estatais em 2023. O encolhimento dos resultados foi puxado pelo desempenho da Petrobras.
No corpo da matéria, o jornalista registra opiniões a respeito dos resultados: “Um complicador é o fato de, desde o ano passado, as estatais estarem mais expostas a indicações políticas com a suspensão do trecho da Lei das Estatais que tornava mais rigoroso o processo de escolha para cargos de conselheiros e diretores”.
Também foi ouvida Elena Landau, economista da PUC-Rio, que afirmou ver riscos de o governo federal interferir mais nas estatais, como no caso da Petrobras. “Quando você muda a Lei das Estatais, você consegue fazer indicações não técnicas de aliados e distribuir cargos.”
A Lei das Estatais foi concebida e aprovada com o propósito de impedir indicações políticas, “não técnicas” para os Conselhos de Administração e cargos diretivos das empresas constituídas com participação do Estado.
Quando me deparo com o esmero dos liberais em separar indicações “políticas” dos apontamentos “técnicos”, sou espicaçado pela tentação de atribuir tal distinção a um distúrbio cognitivo dos indigitados. Estaria cometendo um equívoco. A distinção entre “indicações técnicas” e “escolhas políticas” está inscrita nas políticas de ocupação das agências públicas pelos interesses privados.
Os liberais argumentam a maior “eficiência privada” para justificar a preferência pelas escolhas “técnicas”. As experiências dos países ao longo da história do capitalismo não confirmam essa pretensão de “superioridade” das sabedorias do privado. A maior “deficiência” dos saberes privatistas reside na incapacidade de compreender os processos que sustentam o progresso das economias de mercado-capitalista. Já dizia Hegel: a verdade é o todo.
Observemos a experiência mais exitosa do desenvolvimento brasileiro.
O Plano de Metas de Juscelino Kubitschek articulou as ações do governo, do setor privado nacional e do capital produtivo internacional, que experimentava uma forte expansão. A grande empresa norte-americana movimentava-se dos Estados Unidos para a Europa em reconstrução. As empresas europeias, em maior número, e as norte-americanas transladavam suas filiais dessas regiões para os países em desenvolvimento dotados de estruturas produtivas mais avançadas e que apresentavam taxas de crescimento mais elevadas. O Brasil, entre 1956 e 1960, cresceu, em média, 7% ao ano e tornou-se a economia mais internacionalizada do então chamado Terceiro Mundo.
Muito ao contrário do que pregam os caipiras-cosmopolitas, aquela malta que circula pelo mundo sem entender nada do que acontece, o projeto juscelinista integrou a economia brasileira ao vigoroso movimento de internacionalização do capitalismo do pós-Guerra.
Ao longo do período 1930-1980, o Estado brasileiro constituiu formas superiores de organização capitalista, consubstanciadas em um sistema financeiro público e na coordenação entre empresas estatais, privadas nacionais e estrangeiras.
O setor produtivo estatal, em um país periférico e de industrialização tardia, funcionava como um provedor de externalidades positivas para o setor privado: 1) O investimento público era o componente “autônomo” da demanda efetiva (sobretudo nas áreas de energia e transportes) e corria à frente da demanda corrente; 2) as empresas do governo ofereciam insumos generalizados (energia, aço, não ferrosos) em condições e preços adequados; e 3) começavam a se constituir, ainda que de forma incipiente, em centros de inovação tecnológica.
Vamos à China
Os binários da inteligência oscilam suas percepções para nomear a experiência chinesa: “Capitalismo de Estado” ou “Socialismo de Mercado”? O Estado não intervém como um intruso indesejável, mas é um partícipe estratégico que apoia o investimento privado para reduzir riscos e incertezas. Aqueles que discorrem sobre instituições, Estado e mercado, eficiência, indústria e competitividade a partir das banalidades “modelísticas” não conseguem controlar o queixo sempre caído.
O Estado planeja, financia em condições adequadas, produz insumos básicos com preços baixíssimos e exerce invejável poder de compra. Na coordenação entre o Estado e o setor privado está incluída a “destruição criativa” da capacidade excedente e obsoleta mediante reorganizações e consolidações empresariais, com o propósito de incrementar a “eficiência” microeconômica, para alentar a eficiência “macroeconômica”.
A iniciativa privada sente-se resguardada contra os choques de incerteza e pode se empenhar na acumulação de capital, mediante investimentos em ativos tecnológicos, produtivos e comerciais. A “ampliação do papel do mercado e o reforço às empresas estatais” são um oxímoro para inteligências binárias, cujos neurônios batem no tique-taque do “Estado ou mercado”.
Luiz Gonzaga Belluzzo, é economista e professor.
As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil