“Um dos grandes equívocos, difundidos pelos planos de saúde, é afirmar que saúde suplementar é um mercado como qualquer outro e deve ser regulado por leis de demanda e oferta”.
Por Abraham B. Sicsú – de Brasília
O artigo 196 da Constituição de 1988 diz: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de risco de doença e agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Essa é a base que deve nortear nosso sistema de saúde. O problema é, tendo em conta nossas dificuldades financeiras enquanto nação, como garantir esse direito constitucional. Os países da OCDE, per capita, investem no setor muito mais do que estamos fazendo, o mesmo pode ser dito para os países da Ásia como Taiwan que hoje apresenta o melhor sistema, segundo a Organização Mundial da Saúde.
Os custos de uma boa saúde são muito elevados e exigem medidas ousadas para poder viabilizá-los. Por exemplo, na Inglaterra, onde o modelo é de atendimento Universal, impostos elevados são direcionados para o setor. Na Alemanha é obrigatório ter Plano de saúde. O sistema de saúde americano é basicamente assentado em planos privados, apenas os muito pobres e muito idosos tem suporte governamental. Há diferentes modelos com lógicas diferenciadas, vantagens e desvantagens.
O financiamento do setor tem lógicas diferenciadas, desde tributos, fundos de financiamento, seguros privados e pagamento direto, mesclas dessas fontes que levam a modelos de gestão bastante diversos. Articulações essas, setor público, setor privado, que devem, obrigatoriamente, ser vistas como um sistema e não isoladas.
Grandes equívocos
Um dos grandes equívocos, largamente difundidos pelas operadoras de planos de saúde, é afirmar que saúde suplementar é um mercado como qualquer outro e deve ser regulado por leis de demanda e oferta. Não é. Um mercado que tem características peculiares em que seu funcionamento pode afetar fortemente a estabilidade econômica e social do país. Portanto, exige uma participação efetiva e vigilante do Estado em todos seus segmentos.
Primeiro, deve ficar claro, é setor estratégico para a economia do país na medida em que pode inviabilizar um dos principais avanços, na área social que conseguimos nos últimos anos. Sem ele, com as dificuldades atuais das finanças públicas, teríamos um colapso do sistema de saúde como um todo, inclusive do SUS.
Segundo, por ser altamente oligopolizado, participam dele os usuários, as administradoras de apólices, os operadores dos planos e os profissionais envolvidos nos serviços prestados, com forte peso das operadoras e administradoras de planos e quase nenhum dos usuários. Fundamental o Estado como regulador do sistema, impedindo abusos possíveis.
Terceiro, mais importante, trata-se de setor fundamental à vida e à organização social do país, portanto, exige uma regulação efetiva do Estado e suas instâncias controladoras.
Sendo assim, uma Agência Reguladora como a ANS, que simplesmente quase não intervém nos planos coletivos, passa a ter papel de desserviço para a sociedade. Importante mudar o sistema de regulação e forçar uma maior intervenção.
No atual quadro, ações objetivas são necessárias para que o sistema funcione a contento, entre elas:
Combate a fraudes e desperdícios ainda muito elevados no sistema, os quais encarecem, em muito, o custo dos planos;
Participação efetiva do Estado, através da ANS, nas negociações de reajustes anuais dos planos coletivos. Impossível deixar apenas nas mãos de operadoras de planos e administradores da carteira de usuários de apólices, que nem sempre têm interesses convergentes com os de seus clientes.
Para diluir o impacto de eventos esporádicos em cada subgrupo, definição de um teto de reajuste baseado na sinistralidade geral do sistema e nos custos efetivos envolvidos. Evitar com que grupos específicos sejam descredenciados por ocorrências fortuitas sobre as quais não têm controle.
Participação do Tribunal de Contas da União no controle dos custos envolvidos no sistema e nas margens de lucros possíveis. Nos últimos trimestres tivemos margens de lucros desproporcionais que agravam os índices de reajustes e inviabilizam o sistema para boa parte dos usuários.
Criação de um Fundo Regulador, a ser gerido com interveniência do Ministério da Saúde, que deve ser direcionado para três finalidades apenas. Para anos de eventuais ocorrências desestruturadoras, como podem ter sido os da pandemia; para a incorporação de novas tecnologias, com rigor de controle; para a adoção de novas formas de remuneração de prestadores dos serviços baseadas na geração de valor para o paciente e nos efetivos valores de mercado dos serviços.
Esse Fundo Regulador pode ser formado com recursos já disponíveis como os do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicação-FUST ou os do Fundo de Interesses Difusos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica CADE.
Por fim, a volta dos Planos Individuais que, na prática, faz mais de dez anos não são oferecidos, uma oferta que deveria ser obrigatória.
Os Conselhos Regionais de Medicina têm papel importante no sistema. No caso de Pernambuco, o CREMEPE seria o órgão mais adequado para acompanhar e orientar essas mudanças.
Abraham B. Sicsú, é professor aposentado do Departamento de Engenharia de Produção da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e pesquisador aposentado da Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco).
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