Essa posição do Senado reforçou uma percepção equivocada sobre o tema: a de que o STF teria afastado a tese do marco temporal e que essa seria uma grande vitória para os povos indígenas, para a proteção ambiental e para a promoção de direitos humanos no Brasil.
Por João Paulo Dorini – de Brasília
Mesmo finalizado o julgamento do marco temporal para a demarcação de terras indígenas pelo STF, na última quarta-feira, o debate não terminou. No mesmo dia, o Senado aprovou um projeto de lei que institui o marco temporal, em verdadeira queda de braço com o STF.
Essa posição do Senado reforçou uma percepção equivocada sobre o tema: a de que o STF teria afastado a tese do marco temporal e que essa seria uma grande vitória para os povos indígenas, para a proteção ambiental e para a promoção de direitos humanos no Brasil.
De fato, na tese aprovada pelo STF, aquela que servirá para julgar todos os casos de demarcação de terras indígenas em razão da repercussão geral, há a expressa menção de que “A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente, à data da promulgação da Constituição”.
Nos pontos seguintes, contudo, a tese aprovada pelo STF reconhece todos os efeitos jurídicos que seriam reconhecidos caso o marco temporal fosse aprovado.
O regime constitucional de proteção das terras indígenas, baseado na nulidade e extinção de todos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse dessas terras, só se aplica aos casos em que as terras estivessem ocupadas ou em litígio na data da promulgação da Constituição. O nome disso é “marco temporal”.
Proteção das terras indígenas
Quanto às terras que não estavam ocupadas ou em litígio em 5 de outubro de 1988, o “marco temporal” para a validade do regime constitucional de proteção das terras indígenas, o STF inventou um procedimento no qual se indeniza previamente benfeitorias necessárias e úteis e que também indeniza terra nua com possibilidade de direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso. Esse procedimento já tem um nome no direito brasileiro e se chama “desapropriação”. Ou seja, o STF decidiu que, após o marco temporal da promulgação da Constituição, a demarcação de terras indígenas depende de desapropriação.
Essa foi exatamente a tese defendida por aqueles que clamavam a “segurança jurídica” do estabelecimento de um “marco temporal” para a demarcação de terras indígenas.
Caso o STF tivesse declarado que reconhecia o marco temporal, as consequências jurídicas seriam exatamente as mesmas da decisão que acaba de tomar. Porque, independentemente da decisão do STF, o Poder Público já poderia desapropriar as áreas que não estavam ocupadas pelos indígenas para transformá-las em áreas de proteção indígenas.
As coisas continuam a ser o que são e o que foram, ainda que se mude seu nome. A decisão do STF, ao simplesmente dizer que afasta o marco temporal, não muda seu conteúdo, já que lhe aplicou todas as mesmas consequências jurídicas que ocorreriam caso a tese fosse aprovada.
Descrever um procedimento indenizatório para que terras que não estavam ocupadas por indígenas em 1988 possam ser demarcadas não muda o fato de que ele já existe e chama desapropriação e de que já estava à disposição da União independentemente da decisão do STF. A derrota para a proteção dos direitos indígenas e promoção de direitos humanos não chama vitória só porque se lhe mudou o nome, assim como a rosa não deixa de ser uma rosa caso lhe mudem o nome.
João Paulo Dorini, é defensor público federal.
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