Neste 29 de setembro, lembramos Machado de Assis e sua riqueza literária, também homenageando o legado de José Carlos Ruy, tão dedicado ao nosso grande escritor.
Por Urariano Mota – de São Paulo
Neste 29 de setembro, o mundo culto, civilizado, lembra o falecimento de Machado de Assis. E nessa lembrança do nosso maior escritor, vêm suas muitas frases, como esta maravilha de vida e ironia: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”, em Memórias Póstumas de Brás Cubas. E na mesma obra, este magistral fim de romance e de um acerto de contas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
Mas não, o narrador do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas se afasta, e muito, da pessoa criadora e fecunda de Machado de Assis. O seu legado continua até hoje, e no futuro, em contos, crônicas, romances, ensaios e críticas que ele nos deixou. E de certo modo em filhos não biológicos, como os escritores, críticos e historiadores inteligentes, sensíveis, eles próprios geniais, na medida em que admiramos o que trazemos dentro da gente. Filhos da altura do escritor, historiador, jornalista e pensador comunista José Carlos Ruy.
O bárbaro calendário nos mostra que em 2 de fevereiro de 2021 nós perdemos José Carlos Ruy. Desse modo perdemos também a sua palavra amiga, o estímulo companheiro, a compreensão generosa que só desejava abraçar a diversidade de tudo e de todos nós. Mas na sua inesperada partida, como uma fértil herança, ele nos deixou o seu Dicionário Machado de Assis. Herança fecunda e necessária. Se pensam que exagero, o que podemos dizer de páginas de Machado de Assis onde Ruy nos ilumina? Se não, olhem um dos trechos, como este a seguir:
“Camila – É daquela casta de mulheres que riem da idade. É bonita e deixa às outras o trabalho de envelhecer. Tem cabelo negro e olhos castanhos; as espáduas e o colo feitos de encomenda para os vestidos decotados. E um certo instinto que a beleza possui, junto com o talento e o gênio. É casada com um viúvo, honesta não por temperamento, mas por princípio, amor ao marido e um pouco por orgulho. Vive principalmente com os olhos na opinião. Entrou na casa dos 30 anos de idade e não lhe custou passar adiante. Duas ou três amigas dizem que ela perdeu a conta dos anos, sem perceber que a natureza era cúmplice, e que aos 40 anos Camila mantém um ar de 30 e poucos. Quando surgiu um pretendente para a filha, ficou prostrada: viu iminente o primeiro neto, e determinou-se a adiar o casamento da filha. (Do conto Uma Senhora, de 1884 )”
E aqui, onde José Carlos Ruy cita e resume um personagem com a inteligência e arte do escritor:
“Nóbrega – Foi coletor de esmolas para a Igreja. Encontrou Natividade e Perpétua na Rua de São José quando elas foram consultar Bárbara. Ele ficou com a nota de 2 mil réis que Natividade deu de esmola. Aplicou e multiplicou o dinheiro. Poucos meses depois, deixou de ser coletor de esmolas e mudou de carreira. Deixou a cidade; quando voltou, tinha alguns pares de contos de réis, que a fortuna dobrou, redobrou e tresdobrou. Ganhou dinheiro na especulação, do ‘encilhamento’. Era outro; as feições não eram as mesmas, senão as que o tempo lhe veio compondo e melhorando”. (Esaú e Jacó, 1904)”.
Nas palavras de Ruy, que me falou dessa obra meses antes de falecer: “além de uma apresentação do Machado, reuni opiniões dele sobre tudo, e a descrição dos 1065 personagens da sua obra”. Mas ele realizou bem mais. José Carlos Ruy escreveu um livro fundamental, uma orientação de estudos sobre Machado de Assis para estudantes universitários e colegiais, além de fonte de pesquisa para doutores de nossas universidades. Para todos os leitores que têm o legítimo desejo de compreender a sociedade brasileira.
Como aqui, em uma das finas observações do nosso melhor escritor, na pesquisa e seleção de Ruy:
Classe social
“Então eu fiz uma reflexão filosófica, acerca da diferença de classes; disse comigo que a própria fortuna era por essa graduação dos homens, fazendo com que a outra moça, rica e elegante, de alta classe, não desse por mim, quando estava a tão poucos passos dela, sem tirar dela os olhos, ao passo que esta outra, medíocre ou pobre, foi a primeira que me viu e me chamou a atenção. É assim mesmo, pensei eu; a sorte destina-me esta outra criatura que não terá de subir nem descer, para que as nossas vidas se entrelacem e nos deem a felicidade que merecemos. Isto me deu uma ideia de versos. Lancei-me à velha mesa de pinho, e compus o meu recitativo das Ondas: ‘A vida é onda dividida em duas…’ ‘A vida é onda dividida em duas…’ Oh! quantas vezes disse eu este recitativo aos rapazes da Escola e a uma família da Rua dos Arcos!” (Uma por outra, 1897).
O Dicionário Machado de Assis, a obra do gênio de José Carlos Ruy, está no ponto e pronto para ser publicado pela Editora Anita Garibaldi, faz um certo tempo. A demora dói na gente. E mais não devo falar, em razão desta hora urgente dos meus 73 anos de idade. Nesta altura, me sinto renovado para a luta necessária da nossa literatura. Mas não sei como terminar agora o texto. Por isso, concluo assim: Viva Machado de Assis! Viva José Carlos Ruy!
Urariano Mota, é Jornalista do Recife. Autor dos romances Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude.
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