Como políticas coniventes e interesses econômicos impulsionam a devastação ambiental e a desindustrialização no Brasil.
Por Paulo Kliass – de Brasília
Existe um dito popular que se refere a agosto como sendo o mês de cachorro louco. Esta seria uma das possíveis explicações para a recorrência com que fatos dramáticos têm afetado a sociedade brasileira ao longo da História neste período do ano. Outras pessoas preferem atribuir ao fenômeno astrológico de Plutão retrógrado a desgraceira toda que estamos vivendo por estes dias em termos das queimadas que assolam o País. Enfim, apesar da possibilidade de se buscar razões deste tipo, o fato inegável é que boa parte dos incêndios que estão provocando imensos prejuízos materiais e sociais têm uma base criminosa.
Ao que tudo indica, há uma clara confluência das queimadas provocadas nas regiões Norte e Centro Oeste com os efeitos dos incêndios provocados nas regiões de cultura da cana de açúcar em estados do Sudeste. No primeiro caso, estamos diante do conhecido processo de derrubada de vegetação nativa em biomas como Amazônia, Pantanal e Cerrado, com o objetivo de comercializar madeiras de forma ilegal, abrir campos para pastagem e mesmo iniciar a agricultura de “commodities”, como a soja. Já no segundo caso, trata-se de incêndios em regiões de tradição consolidada de plantio e processamento de cana.
Por mais que a eliminação ilegal dos biomas de fronteira seja caracterizada como atividade criminosa, o fato é que existem dificuldades efetivas para o monitoramento e a imposição de dificuldades por parte do Estado brasileiro para a continuidade de tal fenômeno. A dimensão continental de nosso território, as questões de logística para penetrar em tais áreas de difícil acesso e a influência dos grupos econômicos sobre o poder político local são alguns dos fatores. No entanto, apesar de explicarem, eles não podem servir de justificativa para a incapacidade crônica das instituições estatais de todos os níveis e esferas poderem atuar de forma a inibir e punir tais crimes.
A eleição de Jair Bolsonaro em 2018
É óbvio que a linha política e programática do governo federal pode atuar em um ou outro sentido. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 contou com o forte apoio dos setores ligados ao agronegócio, incluindo também os grupos envolvidos com a grilagem de terras, o garimpo ilegal, a invasão de áreas destinadas a populações originárias e outras ilegalidades. A chegada desse defensor da tortura e da ditadura no Palácio do Planalto teve o significado de abrir as porteiras para a boiada passar, no dizer de seu Ministro do Meio Ambiente. Uma completa inversão valores e de implementação de políticas públicas.
Assim, logo no primeiro ano de seu governo, Bolsonaro estimulou um conjunto de ações desencadeadas pelos produtores rurais. Assistimos à pulverização de atos criminosos por todo o nosso território com apoio do setor público federal. O evento ficou conhecido como o “Dia do Fogo”. Talvez por coincidência ou sincronicidade, mas deu-se também em agosto de 2019. O dia 10 daquele mês foi marcado por uma quantidade incomensurável de atos de degradação ao meio ambiente, sempre contando com a segurança de impunidade para os responsáveis.
Esse tipo de orientação de conivência e cumplicidade para os órgãos públicos teve igual repercussão quando se tratava de apoio à invasão de terras indígenas, ao desmatamento ilegal e na passividade de tratamento de atividade de garimpo ilegal. As direções de órgãos como IBAMA, ICMBio, FUNAI e outros passaram a colaborar com os criminosos e não aturam em defesa das populações atingidas e de preservação do meio ambiente. Além disso, tais instituições foram submetidas a processos de desmonte e de sucateamento, passando a sensação para o conjunto da sociedade de que o momento era para ser aproveitado para políticas de terra arrasada e de vale-tudo.
A partir de janeiro de 2023, as coisas mudaram de orientação. Com o terceiro mandato de Lula, o meio ambiente voltou a ser considerado prioridade na agenda governamental, inclusive com a nomeação simbolicamente relevante de Marina Silva para a pasta responsável pela sustentabilidade. No entanto, o desmonte provocado no setor durante os 6 anos de Temer e Bolsonaro ainda deixa raízes terríveis. Os indicadores apresentam melhoria mas o nível do desastre ainda é bastante levado.
As práticas de queima da terra
No caso da cana de açúcar, a questão é mais complexa. Os setores envolvidos com a defesa dos interesses das usinas argumentam que as práticas de queima da terra após a safra para preparar o novo plantio são seculares. De fato, os incêndios deste mês não podem ser explicados apenas por esta causa. A legislação é ambígua e abre uma brecha de interpretação que permite uma leitura favorável a se utilizar deste tipo de queimada. Uma alternativa de método de planto equivocada em todos os sentidos e que compromete sobremaneira os solos, as águas, a flora, a fauna e o meio ambiente de forma geral.
As primeiras notícias e análises do processo atual, por exemplo no interior do estado de São Paulo, apontam para a possibilidade de ocorrência de atos criminosos contra inclusive os interesses das próprias usinas. Será necessário avaliar com mais calma os resultados das investigações para se ter maior clareza a respeito dos fatos. De toda forma, trata-se de medidas que precisam ser apuradas e os responsáveis de ser incriminados e processados. É fundamental romper o círculo vicioso da impunidade que existe também neste setor.
Enfim, mas o que importa reter no conjunto da análise dos eventos de mais este agosto trágico é que se trata de mais um fenômeno associado à economia da destruição. A começar da inserção do Brasil nesse modelo da divisão neocolonial das atribuições em escala internacional. Nossas elites aceitaram passivamente a transformação do país em um grande produtor exportador de bens primários de baixo valor agregado. Que seja na exportação de minério de ferro e petróleo ou então da produção para venda no mercado externa de soja e carnes. A especialização e a concentração de toda Nação nestas atividades implicam a destruição do meio ambiente e promovem a desindustrialização de nossa estrutura produtiva.
Os atuais incêndios são apenas uma faceta mais extremada e violenta do processo de destruição econômica. É claro que a tarefa atual é combater esse tipo de crime, mas não basta que os céus sejam mais claros e azuis.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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