Rio de Janeiro, 08 de Novembro de 2024

Brasil terá nova chance para proteger sua mega-sociobiodiversidade

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Domingo, 06 de Novembro de 2022 às 14:10, por: CdB
O ponto de não-retorno da floresta Amazônica, como explica o climatologista David Lapola, pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é uma hipótese proposta há cerca de 20 anos que prevê o desaparecimento de meio súbito da floresta, e é um problema de mudanças climáticas. Uma vez que a Amazônia é responsável pela produção da maior parte das condições que a mantém, como as chuvas e a umidade, essa hipótese significa que havendo “uma mudança do clima muito severa na região [amazônica] – aumento de temperatura muito forte, redução de chuva muito severa – as condições de se ter uma floresta como a que a gente tem hoje em dia seriam perdidas. Teríamos, assim, condições climáticas típicas de uma savana, típicas de uma floresta seca ou típicas de uma vegetação sem análogo hoje”, declara Lapola. Não há exagero na análise de Chomsky. Na última semana de outubro, alguns dos mais importantes veículos jornalísticos e científicos mundiais, como o The Guardian e a revista Nature, respectivamente, alertaram para os danos irreparáveis para a segurança alimentar, saúde, para a Amazônia e o meio ambiente no Brasil e para o mundo, de um segundo mandato presidencial de Bolsonaro, e fizeram um apelo para o voto na opção democrática representada pelo ex-presidente Lula, que felizmente venceu neste domingo (30/10). A bacia Amazônica ocupa mais da metade do território brasileiro e possui cerca de 60% de sua área no Brasil, mas ainda se estende por mais oito países da América do Sul, e tem estocado em sua biomassa (matéria orgânica da vegetação e no solo) o equivalente há 10 anos das emissões de gases de efeito estufa (GEF) pelo homem em todo planeta com base nos atuais padrões de emissões (estoque presente considerando-se apenas a Amazônia brasileira). Há ainda a grande contribuição da floresta na produção de chuvas no sul do continente da América do Sul, em especial nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, influenciando fortemente a produção agrícola do país, que é o terceiro maior produtor de alimentos no mundo. Além disso, há o valor inestimável material e imaterial da mega-sociobiodiversidade presente na floresta amazônica, que detém mais de duas de cada dez espécies de árvores conhecidas pela ciência, cerca de 15% da biodiversidade total do planeta, e mais de 180 etnias indígenas. Desse modo, como declara Lapola, a Amazônia tem extrema importância para a questão climática por apresentar tanto o papel de agravar a “mudança do clima considerando a quantidade de carbono que você tem armazenado lá, e o risco que isso tem de ser desmatado-queimado, mandado para atmosfera – como ao mesmo tempo atua como um fator de resolução das mudanças climáticas” –, na medida em que “a floresta amazônica tem atuado como um sumidouro de carbono nas áreas de florestas ainda relativamente intocadas, prestando um serviço de enorme valor para a humanidade” juntamente com outras florestas tropicais, “ao absorver parte do gás carbônico que a [humanidade lança] na atmosfera; e claro que esse sumidouro pode ser impactado; pode até deixar de existir com as mudanças climáticas” juntamente com o desmatamento e a degradação da floresta. Vários estudos recentes têm mostrado que mudanças severas do clima já estão acontecendo na bacia Amazônica, em que já se observa a redução do volume de chuvas nos últimos 40 anos, com o aumento da duração da estação seca e o aumento da temperatura acima da média global.  E embora a questão do ponto irreversível da Amazônia seja principalmente a mudança climática, que “corrói a resiliência da floresta silenciosamente, mesmo nos rincões mais afastados da fronteira do desmatamento” como ressalta Lapola, o desmatamento, as queimadas e a degradação florestal são fatores que tem contribuído muito para acelerar a aproximação da Amazônia de seu ponto irreversível. Como temos visto quase mensalmente nos noticiários, ocorreu uma explosão do desmatamento, das queimadas e da degradação florestal da Amazônia sob o “desgoverno” de Jair Bolsonaro, com recordes sucessivos de destruição florestal, que aumentou 73% em seu desgoverno. Apenas de janeiro a setembro deste ano já foram desmatados mais de 9 mil quilômetros quadrados da Amazônia, uma das piores devastações dos últimos 15 anos segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).  Nos quatro anos do atual desgoverno, o saldo projetado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) são a perda de 47 mil km² de florestas nativas, área maior do que todo o território do Estado do Rio de Janeiro. Sob o desgoverno do atual presidente iniciado em 2019, o Brasil retrocedeu décadas em vários dos setores mais importantes de qualquer sociedade, com profundo declínio nos níveis educacionais; nos cortes de investimento em educação, ciência e saúde pública; no aumento da miséria e da fome; e na explosão da destruição e degradação ambiental – como o aumento vertiginoso da contaminação do meio ambiente, das pessoas e dos povos da floresta por agrotóxicos e mercúrio, por exemplo. Desde o primeiro dia de seu mandato, J.M.B. estimulou atividades ambientais criminosas, e promoveu o desmantelamento de políticas públicas ambientais, e dos órgãos e instituições de proteção e fiscalização ambientais – como ICMBio, IBAMA e Funai –, além de abandonar instrumentos de enfrentamento às mudanças climáticas, como o Fundo Amazônia. Com isso, explodiram os níveis de desmatamento, queimadas e degradação florestal em terras públicas, bem como a invasão e o garimpo em Terras Indígenas, com a consequente contaminação ambiental e de populações indígenas com mercúrio. Além disso, houve o descumprimento sistemático de compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris em 2015 para o enfrentamento da crise climática. Em total contramão, enquanto o mundo reduziu em média mais de 6% as emissões de GEF em 2020 devido a pandemia de Covid-19, o Brasil aumentou em quase 10% suas emissões, já que por aqui apenas o desmatamento tem sido responsável, nos últimos anos, por quase 50% das emissões do país. Com a eliminação de mais de 110 hectares da floresta Amazônica por hora, o que equivale à derrubada de cerca de 18 árvores por segundo entre 2020 e 2021, a destruição da Amazônia e de outros biomas brasileiros têm batido recordes sucessivos anualmente, desde que o desgoverno de Bolsonaro começou. Os dados são do estudo do MapBiomas (Relatório Anual de Desmatamento, RAD), que mostrou que o principal bioma desmatado entre 2019 e 2021 foi a Amazônia (59%), seguido pelo Cerrado (30%), que juntos representam quase 90% da área desmatada. Estudo inédito (em forma de preprint) que deve ser publicado em breve, mostra que com o desmonte da governança ambiental a escalada do desmatamento e das queimadas na Amazônia fizeram com que as emissões de GEF no bioma disparasse, aumentando mais do que o dobro as emissões de CO2 em 2019 e 2020 em relação aos nove anos anteriores, tornando a Amazônia uma fonte de carbono para a atmosfera e contribuindo para agravar o aquecimento global. Como declarou o professor Ricardo Abramovay, da Universidade de São Paulo, que se dedica ao estudo das questões ambientais há quase 40 anos, “o desmatamento hoje no Brasil tem que ser imediatamente zerado, não dá para esperar até 2030 e esta conquista democrática depende de uma ação estatal contra o crime organizado que é seu principal vetor. Alegar a necessidade de alimentar o Brasil ou o mundo para legitimar o desmatamento é um disparate, já que seria possível aumentar a produção sem derrubar uma só árvore” (Dossiê 238, ComCiência). Considerando a urgência global da crise climática que vivemos, em que quase metade da população mundial (3,5 bilhões de pessoas) já se encontra em situação de vulnerabilidade, o Brasil deveria estar se preparando para o enfrentamento das mudanças climáticas, o que seria impossível se os brasileiros não tivessem impedido, nas urnas, à reeleição do atual presidente. Para termos chances de nos prepararmos em termos de cumprir os compromissos já assumidos pelo país no Acordo de Paris em 2015 – aumento da eficiência energética em 10%, redução das emissões de GEF, e o reflorestamento de 12 milhões de hectares até 2030 –, bem como o planejamento em termos de políticas públicas para uma transição energética de carbono zero ou baixo carbono que incentive e viabilize a implementação desta transição, era imprescindível que a opção democrática representada pelo ex-presidente Lula vencesse. O Brasil é hoje o quarto maior emissor global de gases de efeito estufa [considerando as emissões de 1850 a 2021 quando se inclui também as emissões de destruição das florestas e de mudanças do uso do solo]. Mas há uma diferença crucial entre nós e o restante do mundo quanto à origem das emissões. Somos o único país do mundo em que [quase] metade das emissões deriva de desmatamento. Mudar a matriz energética, os modelos de mobilidade, de aquecimento, de refrigeração, de construção e de produção agropecuária, isso exige transformações tecnológicas profundas e que envolvem os padrões não só de produção, mas de consumo das sociedades”, explica o professor Abramovay. Mas os desafios energéticos da transição para uma economia de baixo carbono (baseada em baixos níveis de emissões de GEF) são bem maiores do que os compromissos multilaterais adotados deixam supor, afirma Abramovay. “Os quatro materiais dos quais a humanidade fundamentalmente depende (aço, cimento, plástico e amônia) são todos intensivos em combustíveis fósseis. O mais recente livro de Vaclav Smil mostra que a descarbonização da economia global vai exigir que estes materiais sejam substituídos (pelo quê?), e que suas técnicas de elaboração sejam transformadas. Tendo em vista que a maior parte da humanidade está longe de ter satisfeitas suas necessidades básicas e que os produtos necessários a esta satisfação (escolas, hospitais, fábricas, residências, escritórios, veículos, conexão à internet, saneamento básico, alimentos) dependem destes quatro materiais”, afirma. “Mas nosso caso tem a particularidade de que [quase] metade de nossas emissões derivam de desmatamento”, continua Abramovay. “Zerar o desmatamento não supõe qualquer transformação tecnológica na produção ou no consumo. Ninguém, fora os criminosos, sai perdendo quando se zera o desmatamento. Isso quer dizer que a maior urgência para retirar o Brasil da condição de pária internacional é realizar algo que não se apoia no lento e difícil processo de transição tecnológica da descarbonização e sim na repressão ao crime e à destruição [dos nossos biomas]. Mas é claro que, ao mesmo tempo, será necessário introduzir aqui também transformações decisivas naquilo que o sistema econômico oferece à vida social”, ressalta. Como temos visto, o desmantelamento dos órgãos ambientais pelo atual governo levou ao aumento exponencial da criminalidade da Amazônia, como a invasão do garimpo em Terras Indígenas e a contaminação das populações locais, aumento do narcotráfico, assassinatos de ativistas ambientais e lideranças indígenas, além da escalada vertiginosa do desmatamento – ilegal em 99% dos casos, e 97% deste desmatamento promovido pela atividade agropecuária, segundo estudo já citado do MapBiomas. Nosso futuro enquanto país tem como alicerce a preservação de nossos biomas, com a manutenção da floresta Amazônica e dos nossos demais biomas em pé, bem como o uso sustentável de nossa mega-sociobiodiversidade. Para nos prepararmos para enfrentar a crise climática, Abramovay destaca que temos que rever nosso padrão de mobilidade, estimular o transporte público, valorizar e proteger as formas de mobilidade pouco exigentes em energia (como a bicicleta, por exemplo). Nossa construção civil é, por todo o país, altamente dependente de cimento e desperdiça o potencial ligado ao uso sustentável da madeira. A poluição plástica é gigantesca e é preciso estimular o uso da biodiversidade para a obtenção de produtos que substituam o plástico. Além de zerar o desmatamento, é necessário valorizar o esforço das organizações de pesquisa no sentido de descarbonizar a produção agrícola e, sobretudo, a pecuária”.  Entre 2019 e 2020 cerca de 27% das emissões de GEF do Brasil vieram da atividade agropecuária. É imprescindível assegurar a preservação da Amazônia para a se alcançar o desenvolvimento sustentável da floresta e de seus povos. Como defende Abramovay, “a floresta tem que ser preservada. Desenvolvimento, como diz Amartya Sen [professor e economista indiano, ganhador de um prêmio Nobel de Economia], é o processo de ampliação permanente das liberdades substantivas dos seres humanos. É uma noção que se refere à vida social. Preservar a floresta não garante desenvolvimento. A floresta, antes de ser uma utilidade, é um valor de natureza ético-normativa com o qual uma sociedade democrática deve estar comprometida. Mas a floresta é também um valor instrumental, por suas funções ecossistêmicas. O desafio não só da Amazônia, mas das florestas tropicais da Bacia do Congo e da Ásia é promover desenvolvimento (no sentido de Amartya Sen) fortalecendo os tecidos ecossistêmicos que respondem pela floresta. E apesar dos imensos desafios que precisarão ser vencidos, com a vitória da opção democrática representada pelo ex- e futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva, agora teremos uma nova chance (e esperança) como nação, de caminhar na direção de assegurar nossos biomas de pé e para enfrentar a emergência climática. Para Abramovay, também é “fundamental que emerjam políticas metropolitanas que se contraponham ao verdadeiro apartheid territorial que marca nossas cidades e cuja manutenção é um obstáculo ao avanço da prioridade número um do próximo governo democrático, [que voltaremos a ter a partir de janeiro de 2023], que é a luta contra a pobreza e as desigualdades”. Sob o atual governo federal, também tivemos a volta do Brasil ao mapa da fome, em que 49 milhões de brasileiros vivem em situação de pobreza extrema (23% da população), e mais de 125 milhões de pessoas (quase 60% da população) vive em situação de insegurança alimentar, ou seja, não sabem se terão o que comer no dia seguinte. “O objetivo principal do governo democrático [que a maioria dos brasileiros decidiu no último domingo] não pode ser simplesmente promover o crescimento econômico e sim fazer do crescimento um meio para melhorar a vida social e fortalecer a luta contra as desigualdades”, conclui Abramovay. (Publicado originalmente no Observatório da Imprensa). Por Leandro Magrini, biólogo, mestre em ecologia e conservação de recursos naturais, e doutor em Ciências/Biologia Comparada pela Universidade de São Paulo. Desenvolveu o projeto de jornalismo científico “Divulgação científica para fortalecer a defesa pela preservação da Biodiversidade” apoiado pela Fapesp, bolsa Mídia Ciência, junto ao Labjor/Unicamp.   Direto da Redação é um fórum de debates publicado no jornal Correio do Brasil pelo jornalista Rui Martins.
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